ENSAIO nº 1 - "CHARLES BAUDELAIRE E A LÍRICA MODERNA DO SÉCULO XX'"
APRESENTAÇÃO
Aproveitando o embalo da entrevista com a Luciana Fátima sobre Álvares de Azevedo, venho publicar um trabalho meu, um ensaio escrito para a matéria de Teoria da Literatura I, no primeiro semestre do curso de Letras da UERJ. Nele eu disserto sobre Baudelaire e a lírica moderna do século XX, cujas raízes estão firmemente fixadas nesta icônica figura em questão, portanto, abordo os vários aspectos de sua origem, criação, início da vida boêmia no Quartier Latin de Paris e todo o seu circulo social que culminou no conturbado nascimento de sua polêmica obra intitulada As Flores do Mal que teve uma infância e adolescência tão problemática quanto à de seu criador, culminando inclusive pela passagem ao "centro de delinquentes literários" para que, após um longo e exaustivo processo judicial, fosse liberado de uma forma que suas principais chagas fossem expurgadas, caso contrário, permaneceria em cárcere. Hoje, no entanto, lemos as versões sem corte, não mais sendo necessário que haja cortes, afinal, somos pessoas com um grande discernimento de mundo e sabemos que o ato de proibir somente gerará uma demanda ainda maior pelo "proibido" e hoje nos deleitamos com a versão integral que circula livremente no mercado. Aqui deixo meus agradecimentos ao Professor José Carlos Prioste!
Bon amusement à tous!
Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 2020.
A lírica moderna do século XX é marcada pela obscuridade e pelo sentido de mistério agindo sobre as palavras, envolvendo-as em brumas que retiram a clareza da escrita para deixar a cargo do leitor interpretá-la a sua própria maneira. De acordo com Hugo Friedrich (1978), “a tensão dissonante é um objetivo das artes modernas em geral”, ela é propositalmente dissonante, os escritores líricos modernos não querem ser compreendidos, uma característica inerente à época a qual viviam, flertam precisamente com o absurdo, expressam-se de uma maneira distante, não familiarizam os conteúdos, deformam-nos, é uma poesia de transformação e não de sentir e observar, evita-se a intimidade comunicativa, nota-se uma dramaticidade agressiva que busca construir o significado por meio de transformações, gera perturbação por meio da relação de uma tensão desmedida e os temas obscuros que são explorados, principalmente a morte, adquirindo ares de experimento onde o laboratório é a mente do artista e a cobaia, o leitor. A intensão é chocar, uma posição antirromântica, agravado com o uso de álcool e ópio, principalmente, inicialmente um analgésico em uso pela medicina moderna que depois se transformou em droga com efeito sedativo e hipnótico que foi fortemente difundida após a vitória da Inglaterra sobre a China nas duas Guerras do Ópio (1839-1860).
Essa nova perspectiva lírica moderna é fruto de uma
sociedade em transformação marcada pela Revolução Industrial - na transição da
primeira para a segunda - que vem mudando a sociedade no mesmo ritmo acelerado
que a máquina a vapor de James Watt, favorecendo e acelerando a expansão
burguesa pós-Revolução Francesa já com seus princípios consolidados por
Napoleão Bonaparte, uma expansão que leva um golpe após a publicação do Manifesto
Comunista – publicado em 1848 - que influenciará diretamente os escritores da
época tendo o cenário marcado pela presença dos trabalhadores da indústria
começando a lutar por seus direitos, uma época de muita tensão e insegurança,
de absurdos e de grandes diferenças sociais expondo a opulência da vida da sociedade
burguesa e a insalubridade vivida pela classe trabalhadora, esse abismo social
entre uma classe e outra, as inseguranças sobre o rumo da sociedade europeia
que fervilhava com a tensão constante, isso tudo refletiu diretamente no
caldeirão da escrita da lírica moderna.
Entre as principais características líricas modernas,
destacamos a negatividade utilizada com o intuito de depreciação na
presença de angústias, degradações, confusões, trejeitos, decadência,
enfermidades, domínio da exceção e do extraordinário, obscuridade, fantasia
ardente, o escuro e o sombrio; a presença do grotesco e do fragmentado,
que abrange o bizarro, a jocosidade burlesca, o elemento distorcido, o estranho
e a estética do feio já vista em Victor Hugo e que a trata como um valor, não
apenas como uma oposição ao belo. O grotesco seria o incompleto e o
desarmônico, a desarmonia dos fragmentos.
Victor Hugo
Em meio a escritores líricos modernos como Mallarmé,
Rimbaud, Verlaine, Paul Valéry, Leopardi, Coleridge, entre outros
contemporâneos, destaca-se Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), ou somente
Charles Baudelaire que ficaria seu nome público e de pena. Ele é o maior
representante dos escritores líricos modernos por incorporar todas as
características inerentes a este período, foi autor da maior obra do estilo,
sua coletânea de poemas intitulada “As Flores do Mal” tendo a primeira edição
lançada em 1857, uma obra muito polêmica, controversa e chocante para os
padrões da época.
Nascido em Paris no dia 08 de abril de 1821, filho de François Baudelaire e Caroline Defayis, torna-se órfão de pai aos seis anos de idade e opõe-se fortemente contra o novo casamento de sua mãe com o General Jacques Aupick, com quem ele teria um relacionamento conflitivo, além de refletir esse comportamento também no mundo que o cercava após a morte do pai. Charles escreve seu primeiro poema “Incompatibilité” em 1838 e no ano seguinte ele é expulso do Liceu onde estudava por adquirir um comportamento rebelde. Por volta dessa época, ele começa a se envolver com literatura e passa a frequentar o bairro parisiense chamado Quartier Latin, dando início a uma vida boêmia que, por pressão familiar, é interrompida em 1841 ao forçado a embarcar em uma viagem à Calcutá, Índia, contudo, a interrompe e desembarca nas Ilhas Maurício, no Oceano Índico. As imagens marítimas vistas durante essa viagem lhe servirão como fonte de inspiração e como cenário para escrever alguns dos poemas de seu icônico livro “As Flores do Mal”. Vejamos um trecho do poema “Perfume Exótico” e outro de “Uma Viagem a Citera”, respectivamente, onde o cenário é descrito:
Uma
ilha preguiçosa onde a natureza
Dá
árvores singulares, frutos saborosos;
Homens
de corpos magros, porém vigorosos,
Mulheres
de olhar duro por sua franqueza. (As Flores do Mal, 2009, p. 89)
Que
ilha é essa, triste e negra? — É conhecida
Como
Citera, célebre pelas canções,
Eldorado
banal para alguns solteirões.
Mas,
vejam — é só uma terra empobrecida. (As Flores do Mal, 2009, p. 390)
Em 1842, ele retorna
a Paris, atinge a maioridade e recebe a herança de seu pai, mergulhando de vez
na vida boêmia e fazendo uso indiscriminado de drogas, como o ópio e a maconha,
e de bebidas alcóolicas, substâncias as quais foram usadas na concepção de seus
poemas. Assim como Lord Byron e Oscar Wilde, Charles foi um dândi, onde a
preocupação era com a estética visual, não necessariamente nobre, assim
descrito por ele mesmo: “encarnação suprema do belo transportado à vida
material, aquele que dita a forma e governa os costumes. Suas roupas, seus
enfeites e seu cachimbo testemunham uma faculdade inventiva da qual desertamos
há muito tempo”. Tudo isso influenciará em seu modo de escrever. Seus gastos
desmedidos o levaram a sofrer uma intervenção judicial por parte da mãe que
nomeou um tutor para ajuda-lo financeiramente, fato que o obrigou a trabalhar e,
desta maneira, assim ele começa sua carreira como jornalista, crítico literário
e de arte, tradutor e escritor, iniciando a escrita dos poemas que integrarão a
coletânea “As Flores do Mal”.
La Seine sûr la nouvelle reforme, Paris |
Le Baron de Haussmann
É importante salientar que Charles viveu na Paris do Segundo Império governada por Napoleão III, sobrinho e herdeiro direto de Napoleão Bonaparte, que foi o primeiro presidente francês eleito por voto direto e, ao ser proibido de concorrer a um segundo mandato, deu o golpe em 1851, assumindo o trono como imperador no ano seguinte, algo tipicamente napoleônico, e iniciava-se assim o Segundo Império que introduziu Paris a uma fase de desenvolvimento industrial, a um plano de reformulação e modernização da cidade liderado pelo Barão de Haussmann durante 17 duros anos. A pedido do novo imperador, ele demoliu antigas moradias, comércios e ruas, expulsou os antigos moradores centrais da classe trabalhadora, que viviam em cortiços, para a periferia. O objetivo do imperador era pôr fim aos levantes populares da cidade, as famosas barricadas de Paris. Nesse cenário de revolta contra Napoleão III e também de modernização dentro da constante expansão da Revolução Industrial, tudo isso influenciou a escrita de Charles, considerado “O Poeta da Modernidade” par excellence, portanto ele é fruto da soma destas transformações na sociedade mundial, na sociedade parisiense e de suas experiências de vida, forjando este estilo de escrita tão peculiar e que é sinônimo da lírica moderna. Walter Benjamin (1994), em sua obra intitulada “Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo”, coloca a questão nestes termos: como é possível a poesia na civilização comercializada e tecnológica? A partir de então, o termo “modernidade” passa a ser utilizado e Charles diz que necessitava dela para expressar a especial capacidade do artista ao olhar para o "deserto de uma metrópole" e não apenas ver o "declínio da humanidade", mas também sentir uma "misteriosa beleza" ainda não descoberta. Considerando este ambiente negativo o qual vivia, é possível compreender a influência para a estética do feio e o prazer de desagradar, temas marcantes em suas produções que podemos ver nos exemplos extraídos dos poemas “Ao Leitor” e “Dança Macabra”, ambas do livro “As Flores do Mal”:
Tal depravado pobre que beija e degrada
Da meretriz já velha seu seio mofino,
Roubamos
sem tardar um prazer clandestino
Que
esprememos como uma laranja passada. (As Flores do Mal, 2009, p. 27)
Antínoos
sem frescor, dândis de face glabra,
Cadáveres
lustrados, dom-juans decaídos,
O
giro universal de uma dança macabra
Conduz-vos
a locais que não são conhecidos! (As Flores do Mal, 2009, p. 322)
La Paris sûr la grande reforme haussmanniste
Entre seus poemas, onde as resultantes da modernidade e da negatividade são tão expostas quanto uma fratura, destaca-se “O Vinho dos Trapeiros”. Com o alto imposto do vinho na França, os habitantes das cidades passaram a beber vinho mais barato nas tavernas da periferia pelos trapeiros onde era servido o vinho isento de impostos, o chamado vinho da barreira. Nas palavras de Walter Benjamin (1994): “Naturalmente, o trapeiro não pode ser incluído na boêmia. Mas, desde o literato até o conspirador profissional, cada um que pertencesse à boêmia podia reencontrar no trapeiro um pedaço de si mesmo. Cada um deles se encontrava, num protesto mais ou menos surdo contra a sociedade, diante de um amanhã mais ou menos precário. (...). O bigode lhe pende como uma bandeira velha.”. Eu arriscaria dizer que Baudelaire dá ares de psicólogo, médico e entertainer ao trapeiro, e que em sua taverna, um lugar lúgubre, ele é o grande mestre que, por meio do vinho, vai promover a “cura” dos males dos parisienses aos que o procuram cansados da vida que levam, entretendo-os. Diria que compara o trapeiro, em certo ponto, ao deus Dionísio que libera o vinho comparado ao ouro por sua preciosidade e capacidades mágicas de afogar o ódio, entreter o ócio e leva-los a um sono entorpecido, sendo assim, o trapeiro descrito é como uma personagem de suma importância para a manutenção da sociedade parisiense.
Uma taverna trapista atualmente
Charles foi considerado o fundador do Simbolismo como forma
de oposição ao Realismo, ao Naturalismo e ao Positivismo, uma reação da
intuição e do subjetivismo contra a lógica e a ciência, é a sugestão da
realidade já que ela não pode ser realmente representada, foi um movimento
reacionista feito por poetas com a crise da modernidade. Segundo Wilson (1987),
o Simbolismo é considerado como uma contraparte do romantismo que buscou opor-se
à baliza clássico-científica. Conforme expõe as autoras Ferreira e Pereira
(2012, p. 23), o Simbolismo instala um modelo estético baseado na parcialidade
das relações rítmicas entre palavra, som e imagem, criando uma relação por
vezes conflituosa, levando a uma tensão estética entre a expressão do objeto
concreto e sua exterioridade, sensitiva e “o resultado é uma poesia altamente
sugestiva e sensitiva que filtra as experiências individuais rumo a sugestão, o
vago e o misterioso”. Onde Baudelaire se encaixa nesse contexto? “As Flores do
Mal” é tido como o marco inicial do movimento, a obra rompe com o padrão
estético cuja visão da natureza é tida como a referência do belo e do bem,
sendo assim, atribui à ela a origem dos males e de tudo que é detestável. O
homem é descrito pelo seu lado repulsivo e tudo que desagrada ao próprio homem (Sene,
2012).
A poesia de Charles Baudelaire foi fortemente influenciada
por Edgar Allan Poe, considerado “O Profeta da Poesia Moderna” e pai espiritual
do poeta que traduziu do inglês ao francês suas obras: “Nouvelles Histoires
Extraordinaires” (1857), “Les Aventures d’Arthur Gordon Pym” (1858) e em 1863,
publica “Eureka”; em 1865, “Histoires Grotesques et Sérieuses”. Pode-se dizer
que o grotesco e o sublime tanto vistos na poesia baudelaireana foram
inspirações e influência das obras de Poe. Baudelaire pegou dele o conceito de
“composição”: entenda-se a busca de um
verso que “valesse pelo efeito de conjunto que produziria uma forma que unisse
som e sentido”. Paul Valéry escreveu um artigo que descreve a influência de Poe
sobre Baudelaire, vejamos um trecho: “O demônio da lucidez, o gênio da análise
e o inventor das combinações mais novas e mais sedutoras da lógica com a
imaginação, do misticismo com o cálculo, o psicólogo da exceção, o engenheiro
literário que aprofunda e utiliza todos os recursos da arte, aparecem-lhe em Edgar
Poe e o maravilham”. A associação entre diferentes percepções foi um recurso e
temática centrais para Baudelaire que se apropria da linguagem de Poe e a
distorce a bel-prazer como Prometeu que roubou o fogo e o deu aos homens. Embora
ambos tenham as características da lírica moderna, sejam contemporâneos, explorem
o grotesco e o extraordinário, Poe o faz com romantismo enquanto Baudelaire o
faz com degradação e erotismo, características que pertenciam ao seu círculo
social e estilo de vida.
A confluência de todas essas características da lírica
moderna (industrial, revolucionária e sofredora) - somadas ao meio e
experiências de vida - forjou essa obra de engenharia literária, algo pensado e
não feito aleatoriamente. Baudelaire expeliu, se posso assim dizer, o livro “As
Flores do Mal” em 25 de junho de 1857 chocando a toda uma sociedade que
culminou em um processo judicial para neutralizar uma “maladia editorial”. O
livro foi tratado como uma “sífilis literária moderna” e só voltaria às livrarias
após o corpo ter sido tratado e curado do mal que lhe acometia por meio do
afiado bisturi da censura que cirurgicamente extirpou as partes mais sórdidas
escritas por Baudelaire. Na mesma época, Gustave Flaubert também foi alvo de processo
pela sua ópera prima - “Madame Bovary” - que criticava a hipocrisia da
sociedade francesa e também James Joyce com sua prosa moderna - “Ulisses” -, posteriormente,
na década de 1920, mas essas intervenções não durariam nem seriam efetivas para
derrubar estes titãs literários.
O que diferencia Baudelaire de seus predecessores do
Romantismo é o tipo de linguagem empregada em seus poemas. Ele se utilizou de
um vocabulário não poético, mas próprio à lírica moderna conforme descrito no
início deste texto, com temas diversos e incomuns comparado a seus
contemporâneos, não somente inovando, mas criando uma nova tendência de escrita
que serviria de inspiração a uma nova geração. Seguem alguns exemplos dessa
linguagem: cemitérios, cadáveres, carniças, miseráveis, moribundos, doenças,
crimes, espectros, prostitutas, etc. Exceto por Poe, nenhum de seus conterrâneos
ousou utilizar de um linguajar semelhante, pois a degradação era sua
peculiaridade e principal característica, fazendo-o moderno por excelência e
iniciando o simbolismo com elementos grotescos em seus cenários oníricos, sob o
efeito de vapores opiáceos e regado a vinho da barreira.
Bibliografia consultada:
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal.
São Paulo. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Companhia das Letras, 2009.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.
WILSON, Edmund. O Castelo de Axel:
Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. Tradução de José Paulo
Paes. São Paulo: Cultrix, 1987.
FERREIRA, Vanessa dos Santos; PEREIRA,
Danglei de Castro. Simbolismo em Mario Pederneiras: “prelúdio”. Revista de
Letras Norteamentos. Estudos Literários, Sinop, v. 5, n. 9, p. 20-33, jan./jun.
2012.
FRIDERICH, Hugo. Baudelaire. In:
_________. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do
século XX) São Paulo: Duas cidades.1978. p.35-58.
SENE, Vinícius França de. Modernidade e
angústia na obra de Charles Baudelaire: uma análise filosófica dos poemas de
“As Flores do Mal”. Revista Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 1, n. 2, p.
83-108, jul./dez. 2011.
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