ENSAIO nº 3 - O personagem, a verossimilhança e "O Romancista Ingênuo e o Sentimental", de Orhan Pamuk

 

Nos primeiros três capítulos de seu livro, O Romancista Ingênuo e o Sentimental, Orhan Pamuk nos transporta ao fantástico e rico universo que compõe o gênero literário mais lido mundialmente, fruto da Era Moderna da humanidade, um gênero camaleônico, “metamorfoseante” par excellence, falamos, é claro, do gênero romance. O autor aborda os detalhes e ingredientes mais importantes que compõem a receita deste gênero que busca trazer o leitor para dentro da história, convida-o a vestir os sapatos do protagonista e a caminhar nas mesmas ruas que ele, a compartilhar do seu ar, de sua dor, alegrias, dúvidas. O romance apresenta como uma de suas principais características, senão a mais importante e atrativa, a verossimilhança, que, de acordo com os dicionários Oxford, é: “ligação, nexo ou harmonia entre fatos, ideias etc. numa obra literária, ainda que os elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto; coerência”, logo essa é a característica é indissociável, pois é ela que alimenta o romance, tanto que o autor a abordará das mais diversas formas, em suas próprias palavras: “Visto pelos olhos de suas personagens, o mundo do romance nos parece mais próximo e mais compreensível. É essa proximidade que empresta à arte do romance seu poder irresistível. No entanto, o foco primário não é a personalidade e a moralidade das personagens principais, mas a natureza de seu mundo” (p.29). Antônio Cândido (2005) em seu livro, A Personagem da Ficção, aborda muito bem a relação entre personagem e verossimilhança, complementando Pamuk, vejamos: “Verifiquemos, inicialmente, que há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quando as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança. Tentemos uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictício, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante (p. 55)”. A verossimilhança é complementada pelo realismo formal que é regido pela experiência individual e também introduzido pelo gênero romance, um detalhe muito bem trabalhado por Daniel Defoe em seus livros e que se caracteriza “(...) por indicar uma convicção sobre a percepção individual da realidade através dos sentidos (...) (p. 16)”, de acordo com Ian Watt (1990). Ambos os conceitos se distinguem e se complementam, conferindo o sabor único e inigualável deste gênero literário que o diferenciaria dos demais, tornando-o uma iguaria que conquistaria do mais popular ao mais refinado dos paladares, sendo assim, amplamente eclético e democrático.

No primeiro capítulo de seu livro, na página 8, Pamuk indaga: “O que ocorre em nossa cabeça, e em nossa alma, quando lemos um romance?”; “Gostava da sensação de estar ao mesmo tempo observando secretamente a vida particular de um indivíduo e explorando os cantos escuros do panorama”, responde, dando ares de voyeur ao leitor, como se o pusesse a mirar uma janela indiscreta. O leitor do romance busca experiências únicas, as quais ele possa se identificar e ficar dentro da história como se estivesse escondido em algum cômodo, observando o desenrolar da história, tão absorto que se anularia até que a leitura fosse interrompida. De acordo com Walter Benjamin (1994): “O narrador retira da experiência o que ele conta: da sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes (p.201)”. Benjamin aqui complementa o que foi dito nos trechos de Ian Watt e Antônio Cândido, no parágrafo anterior, a respeito da verossimilhança e realismo formal, onde a experiência pessoal do escritor e de pessoas conhecidas é agregada à do próprio leitor, fazendo que, desta maneira, crie-se o vínculo de identificação necessário para que o interesse do leitor na história somente cresça e o faça sentir-se dentro da própria história, caminhando lado a lado dos personagens, partilhando de seus pensamentos e testemunhando os fatos narrados em suas últimas consequências, como um verdadeiro voyeur ou mesmo como se estivesse com o personagem no divã, ouvindo-o, pronto a aconselhá-lo, muitas vezes querendo impedir que estes tomem certas atitudes, sofrendo contra ou a favor, enfim, vivendo uma história que não é sua, mas que poderia ser.

A importância da narrativa oral para os povos antigos

Nenhum outro gênero literário tem o poder de atrair e absorver como o romance, ao ponto do leitor se imaginar dizendo as palavras dos personagens e confundindo a realidade com a ficção, aliás, esse é um dos objetivos do gênero, deixar a dúvida entre o que é real e o que foi criado para aquele contexto, como bem descreve Antônio Cândido (2005): “Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor (p. 54)”. Ele também se refere a essa dúvida que resta quanto ao “limbo” entre caráter ficcional e real do personagem que é a mola propulsora deste gênero literário que tanto fascina o público leitor, vejamos: “A personagem é um ser fictício, - expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada pela personagem, que é a concretização deste (p. 55)”.  Aqui, novamente Walter Benjamin contribui: “(...). Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus limites. Na riqueza dessa vida e na profundidade dessa riqueza, o romance aprofunda a perplexidade de quem a vive (p.201)”.  Dentro da relação “real x fictício” explicada por Antônio Cândido, Benjamin explica que o escritor vai se “apoderar” dos elementos mais chamativos e atrativos que acontecem na vida real para temperar esse caldo preparado pelo escritor, tornando-o ora temperado, ora suave, ora picante, ora agridoce, enfim, basta o leitor procurar na carta de sua livraria (virtual ou física) ou sebo preferido que encontrará à sua disposição o romance mais adequado ao seu paladar e, por mais paradoxal ou perplexo que possa ser, tudo o que acontece na vida real será encontrado dentro de um romance, talvez disfarçado pelo “tempero”, não percebamos seu gosto, mas o elemento real estará lá presente e agindo para manter o leitor até o fim da história para depois leva-lo ao próximo romance.  

Um exemplo cômico da verdade na narrativa

Em muitos momentos, o leitor chega a pensar que o escritor é o próprio personagem, mas disfarçado, como vemos em David Copperfield, um romance tido como autobiográfico onde o escritor Charles Dickens se transporta para David e reflete nele a sua história, mas de uma maneira que caminha entre o ficcional e o autobiográfico porque quem o conheceu pessoalmente dizia que a vida do personagem e do autor eram muito similares; ou como T. E. Lawrence, outrora mundialmente conhecido como “Lawrence da Arábia”, cujo filme homônimo alcançou recordes de bilheteria, dirigido por David Lean no ano de 1962. Em seu livro autobiográfico sobre a Revolta Árabe, Sete Pilares da Sabedoria, onde assumiu papel de liderança estratégica da inteligência inglesa, ele nos leva a pensar se todos os trechos da longa obra são totalmente verídicos ou se ele criou certas passagens, pois mescla dados e fatos históricos com descrições e narrativas beirando ao fantástico, como as longas travessias no deserto, as operações de explosão das ferrovias otomanas e a sua chegada a Damasco, na atual Síria.

  Os Sete Pilares da Sabedoria, de T. E. Lawrence.  

 Neste trecho, Pamuk nos fala sobre o efeito do jogo de espelhos: “A ambiguidade em relação a que partes do romance se baseiam na experiência e que partes são fruto da imaginação põe o leitor e o escritor numa situação semelhante a essa. A cada detalhe o escritor pensa que o leitor vai pensar que esse detalhe foi vivenciado. E o leitor pensa que o escritor escreveu com o pensamento de que o leitor iria pensar que o detalhe foi vivenciado. Por sua vez, o escritor pensa que o leitor pensa que ele escreveu esse detalhe pensando que o leitor iria pensar isso também. O jogo de espelhos é válido igualmente para a imaginação do escritor. Quando elabora uma frase, o escritor supõe que o leitor (correta ou erroneamente) pensará que ele inventou esse detalhe. O leitor também supõe isso e pensa que o escritor supõe que ele pensará que esse detalhe é imaginário. E da mesma forma o escritor supõe... e por aí afora. Nossa leitura de romances é colorida pela incerteza resultante desse jogo de espelhos. Assim como não podemos determinar de comum acordo que parte do romance se baseia na experiência e que parte é fruto da imaginação, o leitor e o escritor nunca podem chegar a um acordo sobre a ficcionalidade do romance (p. 27)”.

Charles Chaplin em um jogo de espelhos, em O Circo

Pamuk refere-se ao romance como uma ficção tridimensional apoiada em: 01) experiência pessoal; 02) conhecimento adquirido por meio dos sentidos, e; 03) o centro, a verdade secreta que ele promete ao leitor, ou como Tolstói o chama, o sentido da vida, relacionado com a vida em si e com a sua estrutura, não com a história, vide o trecho: “Em Guerra e paz, de Tolstói, e Ulysses, de James Joyce, dois romances em que muitas vezes sentimos a presença do tempo objetivo partilhado, o profundo centro secreto está relacionado não com a história, mas com a vida em si e com sua estrutura (p. 38)”. Esse “tempo objetivo” funciona como uma espécie moldura que busca unir todos os elementos do romance e dispondo-os como se fossem uma pintura, elementos esses que observamos em nosso dia a dia já nos são familiares e podemos chamá-los de experiência sensorial, por exemplo: o sabor de uma bebida ou alimento, a sensação do vento quando nos atinge, uma conversa com algum amigo, entre outras que somadas às experiências de outras pessoas nos formam a base de nosso conhecimento que despertam o interesse por ler um romance, a sensação de familiaridade com o nosso modo de vida é o grande atrativo quando comparado a uma poesia, que pode ser mais abstrata, ou uma narrativa tradicional. Bakhtin (1998) também se apoia no mesmo tripé de Pamuk: “A experiência, o conhecimento e a prática (o futuro) definem o romance (p.407)”, em comparação a gêneros literários antigos, onde “a memória, e não o conhecimento, é a principal faculdade criadora e a força da literatura antiga (p.407)”.  Em relação a outros gêneros literários, como a epopeia, onde Bakhtin descreve o mundo épico sendo “(...) totalmente acabado, não só como evento real de um passado longínquo, mas também no seu sentido e no seu valor: não se pode modificá-lo, nem reinterpreta-lo e nem reavaliá-lo. Ele está pronto, concluído e imutável, tanto no seu fato real, no seu sentido e no seu valor (p.409)”, os personagens do romance são muito mais complexos por focalizar em pessoas comuns e trazer à tona os aspectos do cotidiano, portanto, são mais atrativos por serem conflitantes, contraditórios, por terem uma lógica não cartesiana e assim surpreender o leitor, não sendo óbvio, nem previsível. Ian Watt (1990) trata do “realismo” na literatura como a valorização da experiência individual, conforme citado no parágrafo inicial. Ele entende que o escritor de Robinson Crusoé e Moll Flanders, Daniel Defoe, “(...) inaugurou uma tendência na ficção: sua total subordinação do enredo ao modelo da memória autobiográfica afirma a primazia da experiência individual no romance da mesma forma que o cogito de ergo sum de Descartes na filosofia (p. 16)” e complementa: “o enredo envolveria pessoas específicas em circunstâncias específicas, e não, como fora usual no passado, tipos humanos genéricos atuando num cenário basicamente determinado pela convenção literária adequada (p. 17)”. Vemos que para mudar a tradicional perspectiva literária, o romance buscou na filosofia sua inspiração para mudar o presente e firmar o romance como gênero associado ao tempo presente, ao individualismo e adaptabilidade, convergindo com que Pamuk e Bakhtin pensam a respeito do gênero.

A Filosofia e a Literatura

O interesse dos escritores da primeira metade do século XX pela psicologia para compor o “caráter” do personagem é abordado por Pamuk em sua obra. O autor descreve: “Quando estava lendo e pesquisando em algumas das grandes bibliotecas americanas para preparar estas conferências, pouco encontrei quanto ao reconhecimento de que o aspecto do ser humano que chamamos de “caráter” é um constructo histórico e de que, como nossa própria constituição psicológica e emocional, o caráter de figuras literárias é um artifício no qual decidimos acreditar (p. 32)”.  Aqui ele aborda o fato de o caráter do personagem literário ser explorado como algo que não ocorre na vida real, complementando: “Ademais, o caráter humano não é tão importante na moldagem de nossa vida quanto se pretende que ele seja no romance e na crítica literária do Ocidente (p.32-33)”. Apesar de reconhecer que o “caráter” é um fator que diferencia um indivíduo do outro, não é tão preponderante quanto a maneira como os protagonistas se encaixam no cenário, meio e nos eventos propostos pelo romance e conclui: “O caráter do protagonista principal de meu romance é determinado da mesma forma como o caráter de uma pessoa é forjado na vida: pelas situações e pelos acontecimentos que ele vivencia (p. 33)”. Bakhtin (1998) reforça essa teoria, pois descreve: “A entidade épica do homem se desagrega no romance, segundo outras linhas: surge uma divergência fundamental entre o homem aparente e o homem interior e, como resultado, leva o aspecto subjetivo do homem a se tornar objeto de experiência e de representação (p.426)”, portanto, através do cotidiano, das influências do meio, das circunstâncias, da própria essência do personagem que é revelada aos poucos durante a história, vai-se revelando o caráter, como ao descascarmos uma cebola, chegamos ao seu interior que muitas vezes é oculto durante boa parte do enredo e pode causar uma reviravolta, o vilão pode não ser tão mau como foi apresentado, ou o herói pode não ser a fonte de virtudes que lhes são destaque, o romance pode agir sobre o caráter de seus personagens de forma surpreendente, como por exemplo Capitão Nemo, figura enigmática e obscura do romance Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, onde nas várias páginas entre o início e o fim da obra, não descobrimos de onde ele veio nem para onde vai, ele simplesmente desaparece em meio a um maëlstrom, mas na obra A Ilha Misteriosa, do mesmo autor, e, ao mero acaso, os protagonistas encontram com uma versão já moribunda do personagem que lhes conta a sua história e em seguida submerge para a eternidade. Somente após esse relato percebemos as razões de ter se tornado recluso, ocultas no romance que o introduziu, estas são artimanhas romanescas elaboradas com astúcia pelo autor. Antônio Cândido (2005) aqui complementa: “Na verdade, enquanto na existência quotidiana nós nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são revelados pelo romancista, cuja função básica é, justamente estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades reveladoras do espírito (p. 66)”.

Capitão Nemo, de Júlio Verne, em seu Nautilus

Podemos notar que Orhan Pamuk consolida em seu relato pessoal de sua experiência de escritor romancista o que vários escritores vêm ao longo do tempo tentando explicar: o processo de formação do personagem do romance, um assunto tão complexo e que envolve a análise destas formações ao longo do tempo, mas ele adiciona um fator decisivo, a sua experiência pessoal como escritor, o que confere também uma conotação de explicação romântica sobre o próprio gênero e também um assunto tratado por outros escritores e estudiosos ao longo do século passado conforme este foi se adaptando e se firmando cada vez mais no gosto não só popular, mas também da alta burguesia. As análises dos romances utilizados como exemplo pelo autor, principalmente Anna Kariênina, de Tolstói, tido por ele como um dos mais perfeitos romances que existem, nos traz aos olhos e à nossa percepção os conceitos por trás das tramas românticas, destacando-se a verossimilhança que vai reger os demais, juntamente com a concepção de realismo, exemplificado pelos romances de Daniel Defoe, que mudaram a concepção literária tradicional de escrita, pois prima pela experiência individual, evitando o uso de tipos humanos genéricos,  assim como o uso do efeito de jogo de espelhos, a visão tridimensional que também traz a experiência pessoal com um dos pilares - com destaque do “centro” - a experiência sensorial, a importância do caráter, entre outros que tornam a complexa figura do personagem do romance a “cereja do bolo” do gênero, pois é essa complexidade, os temores, os medos, os surpreendentes atos de bravura, metamorfoses comportamentais, todo esse molho que confere ao gênero - ou melhor dizendo, à essa instituição chamada Romance - esse sucesso literário há muito consolidado e sem concorrentes à altura, que vem durando há séculos. 


Referências bibliográficas:

1.     Pamuk, Orhan. O Romancista Ingênuo e o Sentimental. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 1ª Edição.

 

2.     Cândido, Antônio. A Personagem do Romance. In. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007. 11ª Edição.

 

3.     Bakhtin, Mikhail. Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In: ___. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini. 4ª ed. São Paulo: UNESP-HUCITEC, 1998.

 

4.     Benjamin, Walter. O Narrador. In: _____ Magia e Técnica, Arte e Política -

ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª

edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

 

5.     Watt, Ian. A Ascensão do Romance: Estudos Sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


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