Ensaio nº 7 - A CONDIÇÃO SOCIAL DA MULHER E A REPRESENTAÇÃO FEMININA NAS PEÇAS DE GIL VICENTE


 

A CONDIÇÃO SOCIAL DA MULHER E A REPRESENTAÇÃO FEMININA NAS PEÇAS DE GIL VICENTE

 

Gil Vicente, um artista que, comparado a outros de seu tempo, como por exemplo, Garcia de Resende, homem de letras, cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo de El-Rei, e Sá de Miranda, ou Doutor Francisco Sá de Miranda, que pertenceu a corte e foi tido como um poeta e um homem de Letras, em sentido humanista, com tudo o que isso pressupunha de aura cívica. “Nele a condição de servidor do monarca prevaleceu largamente sobre a de artista, como, de resto, a dimensão moral se sobrepôs ao talento e à inventividade, próprios de uma outra concepção de arte.” (BERNARDES, 2008). Não se pode negar que o reconhecimento a Gil Vicente veio tardiamente, consolidando-se a partir do século XIX. Diante de seu legado, é imprescindível revelar como ele representava a figura feminina e a condição social da mulher em suas peças, pontuando seu diferencial perante seus contemporâneos.

Dono de um estilo mordaz de escrita, satirizava a moralidade da corte mesclando o sagrado e o profano. Não se pode negar que ora abordava profundas questões teológicas, ora misturava, com relativa facilidade, reminiscências clássicas com elementos iconológicos e com fundamentos de doutrinas políticas, adotando o cenário pastoril e a presença da figura do pastor em suas obras. Vale destacar que “sua cultura se aproxima muito dos fundamentos da realidade e dos mistérios medievais” (BERNARDES, 2008)     Logo, todos esses elementos influenciarão, de uma certa forma, o comportamento feminino em suas obras. “São extremamente contrastados os retratos que se oferecem à nossa observação, declinando-se entre ‘Maria’ perfeição, modelo por definição ínvio, inimitável, e ‘Eva’- tentadora, tão acessível, tão humana sobretudo” (KLEIMAN, 2003). Partindo dessa antitética descrição, evidencia-se uma verdadeira encruzilhada comportamental de duplo caráter, revelando o modo que a mulher é retratada em sua obra.

Destaca-se a figura da alcoviteira que é descrita de forma singular e apresenta um papel decisivo no enredo de seus autos e farsas, principalmente, podendo ser encontrada em peças como o Velho da Horta, na pessoa de Branca Gil; no Auto das Fadas, na personagem Genebra Pereira; no Auto da Barca do Inferno, personificada como Brízida Vaz e na Farsa de Inês Pereira, como Lianor Vaz. Mas o que todas essas mulheres têm em comum? Uma profissão cuja função é encontrar esposas para homens apaixonados, incluindo aqueles que jamais poderiam ter qualquer tipo de relação amorosa, como os de cargos eclesiásticos e que recorrem a ela como uma

mediadora do amor carnal. Já era também encontrada na comédia Pamphillus, do poeta latino Ovídio, na figura da velha Trotaconventos, e mais adiante, no século XV, por Celestina, sua sucessora, descrita pelo escritor espanhol Fernando Rojas, que mediou a relação de Calisto e Medea, onde se observa a descrição desta aviltada e solicitada profissão, como “mulher madura, experimentada, dona de uma astuta sabedoria prática, conhecedora profunda de todos os desvãos das paixões humanas e convicta de que, no fundo, são estas que regem a vida”. (COELHO, 1963)

 A alcoviteira vicentina irá portar-se da mesma maneira que suas duas antecessoras (Trotaconventos e Celestina). Como também descrito no ensaio, Por Detrás das Alcoviteiras, além de outras atividades, é importante enfatizar que a função básica da alcoviteira, consiste em “curar, ou satisfazer, paixões ilícitas ou não correspondidas, de homens perdidamente enamorados que procuram os seus serviços, ou em prover mancebas desencaminhadas para fins puramente sexuais”. (BISHOP-SÁNCHEZ,2003)

Surge em Branca Gil outra característica da alcoviteira, a de praticante de magia do feitiço para o fim da sedução. “Mas, valendo-nos do que Gil Vicente deixa-nos transparecer pelo decorrer da trama, seu sucesso vinha de sua extraordinária astúcia e sabedoria humana e não dos seus feitiços.” (COELHO, 1963). O autor deixa bem claro em suas obras que os feitiços, o pacto com o diabo e o uso dos bruxedos era normal entre as ‘mediadoras do amor’, como também ocorre em Genebra Pereira, no Auto das Fadas. É importante ressaltar que a alusão à feitiçaria erótica simbolizava a valorização da mulher em função de sua intatilidade e o poder da alcoviteira de manipular este valor intrínseco da mulher numa sociedade patriarcal.  Citam-se suas vocações em simular uma função materna ao evocar atividades geradoras como casamenteira, costureira ou curadora. Vale destacar que: “A alcoviteira teria, portanto, o poder de anular ou inverter a consequência ginecológica da imoralidade das mancebas, imoralidade que ela também instiga como parte dos seus ofícios e reconverte-as em virgens.” (BISHOP-SÁNCHEZ, 2003, p.16).

Vale destacar que a posição de Gil Vicente frente à alcoviteira, na primeira ideia que lhe ocorre, é a intenção moralizante, de mostrar o mal, suas consequências, inconvenientes e castigos, que parecem não ser suficientes para coibir tal atividade profissional, mesmo não legalizada. “Em literatura, a imagem da mulher esbate-se entre duas tendências opostas: a mulher como símbolo da salvação do homem e a mulher como símbolo da queda do homem.” (BISHOP-SÁNCHEZ, 2003). Em relação à imagem da prostituta literária na época medieval, ela insere-se nitidamente no protótipo de Eva, a mulher sedutora que levará o homem à sua perdição, nela se confundindo a sedução sexual, a exibição física e o pecado. É com o mesmo fim que Gil Vicente coloca a alcoviteira no palco – uma ex-prostituta -, dado que é por intermédio dela que se projeta a função da manceba. A alcoviteira negocia seus serviços com os homens que a procuram ou em julgamento por serviços prestados. Tira proveito da degradação moral do clérigo, insertando seu ofício no centro do mercado de procura e demanda da imoralidade sexual. Assim, Gil Vicente desmorona as divisões tradicionais entre a religião e a prostituição.

No Auto da Barca do Inferno, Brízida Vaz, a alcoviteira, embora seja uma personagem secundária, simboliza a devassidão da política sexual da época. Marginalizada e desprovida de voz pública em uma sociedade patriarcal, desempenha artes e funções ligadas à corrupção, possuidora de ampla lista de bens materiais, estando suas atitudes associadas às artes de enganar e manipular. Cura ou satisfaz paixões ilícitas ou não correspondidas de homens viris e enamorados que procuram seus serviços, ainda que sejam, exclusivamente, sexuais. Absorve a superabundância sexual de homens solteiros. Embora várias ordenações afonsinas, joaninas e manuelinas postulassem penas severas às suas atividades, a alcovitice e a prostituição eram toleradas e reconhecidas pela sociedade e até pelos reis. Em sua defesa, Brízida evoca a cumplicidade de todos aqueles que se serviam dos seus préstimos. Uma de suas qualidades era sempre ter boa vontade e prontidão, pois eram seus clientes que a procuravam para solicitar seus serviços. Além disso, exercia mais de um ofício, sendo costureira, parteira ou vendedora de joias, dispondo de oportunidades para realizar contatos frequentes. Por isso, a alcoviteira é uma personagem ambígua, pois circula e atua em diversos ofícios, o que faz ter seu papel de medianeira, por vezes, desacreditado ao entrar em contato com inúmeras moças. Ao longo de seu percurso, quer seja uma intermediária de encontros amorosos ou carnais, seus interesses são totalmente econômicos, explora os desejos masculinos, sem afetuosidade. Sendo assim, seu comportamento reflete a desumanização que acompanha a História na transição chocante entre o mundo medieval e moderno, renascentista no qual o capital e o espírito burguês transformam todos em objetos alienáveis.

Na “Farsa de Inês Pereira”, o feminino ocupa o lugar de transgressão inversiva. O nome, marca exclusiva identitária da personagem, é a marca da inversão: Inês, Agnes. Deveria ser casta, mas é uma mulher devassa, desviante, subversiva, violenta e tagarela, o contra modelo da donzela virtuosa. Caracteriza-se por ser um “ser do exterior”, que almeja liberdade, vislumbra um olhar sobre o universo masculino e convive com a frustração sexual. Valoriza o verbo ‘sair’, que simboliza infringir a regra, social e moral.

No fim da Idade Média, a mulher era excluída do palco, pois era proibida de atuar. Assim, a subalternização da mulher na cena obrigava que os papéis femininos fossem realizados por homens, que acabavam sendo injustamente julgados e cujas interpretações representavam uma parodia da feminilidade.  “O que se nos torna patente é a questão do gênero como aspecto central do teatro medieval que, (...), promulgava o conceito de lugar-natural-da mulher como sendo o de casa.” (BISHOP-SÁNCHEZ, 2003, p.20)

A casa desempenha a função essencial de vigilância da mulher, protegendo-a do mundo dos homens. Ao longo de sua trajetória, Inês passa da mulher que desejava liberdade total, como convém o universo farsesco para o ato de agir como mulher-modelo, vítima de um marido tirânico. Ao casar novamente, por exemplo, seu marido atento e compreensivo, Pêro Marques, possibilita que Inês reencontre a saída para o mundo, a frequentação dos homens, o erotismo e a hiperatividade sexual, tipicamente feminina. Assim, varia os prazeres, entre marido e amantes, alcançando o auge do cinismo ao ser levada pelo próprio marido para os braços do amante e nem sequer deixa de pedir seu consentimento para sair (KLEIMAN, 2003).

O discurso de Gil Vicente retrata o feminino sob a ótica e manipulação masculinas. Realmente, o tratamento do masculino e do feminino é objeto de sarcasmo: a mulher adúltera ao lado do homem cornudo; a autoritária e frustrada ao lado do débil e impotente. Daí, conclui-se que a farsa é um gênero que não poupa ninguém. Sua lógica é diferente, teatral, lúdica, de um amoralismo tranquilo. Vale destacar que é na representação gestual e verbal da sexualidade que reside a malícia da farsa vicentina. O feminino viabiliza o jogo da retórica amorosa, de conivência entre o artista e o público no qual o que importam realmente são o riso, a transgressão coletiva e a coesão do grupo. 

Ao longo das análises demonstradas, faz-se evidente o lugar de destaque da figura feminina na obra de Gil Vicente. As personagens são múltiplas, oriundas da criação ou da mistificação lúdica do autor, variando entre desencarnadas, relacionadas ao mundo mitológico, religioso, fantasioso das fadas ou das feiticeiras. À luz da farsa, por exemplo, tudo é possível ou deformado para predominar o riso regenerador. Ademais, o papel feminino viola as regras, representando o antimodelo sustentado pela farsa, seja representando a transgressão, seja reivindicando o direito ao espaço que lhes é negado, ora público, de poder, da palavra ou da sexualidade livremente assumida. O teatro vicentino presenteia a figura feminina com um papel ativo, de destaque, em primeiro plano. De forte personalidade, repleta de atributos, é a heroína do quotidiano, dominando o espaço cênico. Sua voz possante permite verbalizar uma nova ordenação que acolhe o direito ao desejo proibido, de dispor de seu próprio corpo ilimitadamente. Entretanto, sua imagem triunfal é pura ilusão e só se concretiza no palco, por ser, de fato, considerada uma imagem degradante, desqualificadora, perversa e adúltera.

 

Referências bibliográficas

BERNARDES, José Augusto Cardoso. Gil Vicente. Lisboa: Edições 70, 2008.

BISHOP-SÁNCHEZ, Kathryn. “Por Detrás das Alcoviteiras: Prostituição e Libertinagem na Obra de Gil Vicente.” In: Maria João Brilhante, José Camões, Helena Reis Silva, Cristina Almeida Ribeiro (Orgs.). Gil Vicente 500 anos depois. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. 9-24.

COELHO, Nelly Novaes. “As Alcoviteiras Vicentinas.” ALFA: Revista de Linguística 04 (1963): 83-105. PDF. 15 de março de 2022. <https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3219>.

KLEIMAN, Olinda. “Figuras femininas e seus amores.” In: Maria João Brilhante, José Camões, Helena Reis Silva, Cristina Almeida Ribeiro (Orgs.). Gil Vicente 500 anos depois. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. 277-289.

 

 

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