Ensaio nº 10 - RUI RIBEIRO COUTO E O PENUMBRISMO


 

RUI RIBEIRO COUTO E O PENUMBRISMO

 

O modernismo brasileiro, cujo principal marco foi a Semana de Arte Moderna de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, inaugurou uma vertente literária de ruptura com os padrões literários enrijecidos e guiados pela Europa, significando um rompimento - cuja natureza é iconoclasta -, bem-vindo e necessário para uma mudança de rumo do corpus literário brasileiro, destacando a paisagem e o cotidiano urbanos já explorados desde o pré-modernismo, um movimento tão forte que tirou a cidade de São Paulo de seu provincianismo oligárquico, lançando a burguesia paulistana e também a carioca, o principal eixo cultural brasileiro, à vanguarda. Pode-se notar a cidade de São Paulo como epicentro deste cataclismo literário e cultural, pois envolvia outras expressões de arte além da prosa e da poesia, como a pintura, a música e a dança, patrocinadas pelas principais famílias da elite paulistana. As figuras de Mário e Oswald de Andrade, de Menotti del Picchia e Rui Ribeiro Couto foram as que mais exaltaram a metrópole.

Rui Ribeiro Couto, no poema São Paulo, de seu livro “Um Homem na Multidão”, de 1926, nos versos 1, 3 e 5 da primeira estrofe, o poeta descreve a sensação visual da neblina na paisagem matinal urbana com efeito de atenuante, como se silenciasse a cidade ao mostrar os bairros burgueses, as alamedas e os jardins da capital ainda “adormecidos”, vemos que “a irregularidade métrica, parece sugerir algo de um movimento próprio de neblinas e, então, das manhãs nevoentas de São Paulo”. “esconde” “o contorno das grandes fábricas ao longe”,  destaca a “cor de barro novo”, em contraste com característica que a umidade e o orvalho matinal imprime nos telhados do “chato casario proletariado”, uma cor que remete a um “manchado de sangue”.  Na segunda estrofe, destaca o “silêncio” das manhãs de inverno paulistanas já se destaca por meio de repetição da própria palavra no final dos versos 2, 3 e 4, onde, em antítese com o primeiro verso desta estrofe: “nas ruas do centro agita-se a pressa do comércio”, “amortecem um pouco orgulho triunfante das tuas chaminés”. Por meio desse “retrato” ressaltando a neblina e o silêncio, efeitos visuais que se pode assim dizer, descreve um momento particular para o escritor que mostra o despertar da cidade que aos poucos iria tornar-se agitada em uma época que a capital ainda não era uma metrópole caótica, perigosa e infernalmente desorganizada como os dias atuais, embora ele já desse sinais do que se tornaria ao enfatizar além da cor de sangue, o segundo verso “- ó São Paulo enorme, ó São Paulo de hoje, ó São Paulo ameaçador!-”, descrevendo o seu crescimento desenfreado com a produção cafeeira antes da crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.

No ano de 1957, em uma carta endereçada a Rodrigo Octavio Filho a respeito do Penumbrismo – conforme descrito por ele mesmo: “por volta dos anos 1920 a 1923, uma certa atitude reticente, vaga, imprecisa, nevoenta, no jeito de escrever versos” -, Ribeiro Couto ainda explica:

“O que eu trouxe de novo, se alguma coisa de novo quiserem reconhecer-me, foi uma série de ‘temas humildes’ do ‘humilde cotidiano’(...), eu opus (na linguagem discreta dos meios tons, da penumbra em que eu próprio vivia) os ‘temas cotidianos’, os temas da vida e ao alcance do olhar de qualquer um, caixeiro de venda ou pequeno funcionário, qualquer ‘homem na multidão’.(...). Não foram, entretanto, os temas do ‘cotidiano’ que fizeram falar de uma ‘escola penumbrista’, e sim um certo jeito, um tom, um clima de expressão poética.” (COUTO, 1957).

Essa explicação se aplica perfeitamente ao poema São Paulo, pois a temática gira em torno do “humilde cotidiano” acima descrito. Qualquer morador da cidade que cedo se levanta para trabalhar, como os operários ou comerciantes da área central da cidade, poderiam se deparar com a neblina e compartilhar das mesmas sensações e impressões descritas pelo autor. Aliás, o próprio nome do livro o qual este poema foi publicado, “Um Homem na Multidão”, de 1926, já sugere de qual perspectiva se tratam essas observações que são de ordem subjetiva, pessoal, como se as ruas fossem vistas por alguém não específico, pois, o artigo indefinido “um” se refere a qualquer “homem”, no sentido de um ser humano qualquer, que está na multidão e as sente à sua maneira. Nada mais “penumbrista” do que este título. Conforme a etimologia da palavra “penumbra”: do Latim pene, "quase" ou “aproximadamente”, e umbra, "sombra" (CUNHA, 1989), termo muito apropriado para remeter à imprecisão da visão descrita acima pelo escritor. Sinal dos tempos, pois da década de 1920 a 1950 é o período que se prepara para o “boom” industrial que alçará a cidade de São Paulo ao status de metrópole e nos dias atuais, megalópole, pois ela passará pelo efeito da conurbação ao mesclar seu limite de município ao de outras cidades em seu entorno, unindo suas ruas às delas, e não mais sabendo onde ela termina e a outra começa, perdendo-se totalmente o controle do crescimento e planejamento urbano, tema para outra discussão, então, o que diria Ribeiro Couto se hoje estivesse entre nós?  

“É evidente que as vanguardas de um modo geral louvaram em verso e prosa a chegada da modernidade na paisagem urbana e quase todos elegeram como tema preferido a cidade natal” (BOAVENTURA, 2022). Na poesia de Ribeiro Couto podemos “ouver” ecos de trabalhos iniciados por escritores de outras escolas, como a poesia simbolista e urbana de Baudelaire, ou ainda, uma pitada do naturalismo de Émile Zola nas lentes do subjetivismo e da análise psicológica de Poe? Assim se poderia resumir o penumbrismo deste exímio e olvidado poeta urbano, cujo tema também se refletirá em outras obras urbanas como Paulicéia Desvairada, Lira Paulistana, O Despertar de São Paulo, entre outras? É bem possível. Vemos através dos olhos deste observador urbano a figura do flâneur - figura típica do cotidiano urbano parisiense de meados do século XIX, uma espécie de burguês que tinha o tempo à sua disposição para observar a multidão que forma a paisagem da Paris oitocentista – como descrita por Walter Benjamin? Podemos dizer que sim, pois tudo o que é urbano fará parte da prosa e poesia modernista e pode ser enquadrado no estilo penumbrista, mais subjetivo e pontual, do poeta santista Rui Ribeiro Couto, que também pintou paisagens urbanas (sobretudo paulistanas) através das letras.

 

Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto nasceu em Santos (SP), em 12 de março de 1898, e morreu em Paris no dia 30 de maio de 1963. Foi escritor, jornalista, magistrado e diplomata. Ocupou a cadeira 26 da Academia Brasileira de Letras. Em 1915, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Nesse período, atuou como repórter do Jornal do Commercio e, posteriormente, do Correio Paulistano. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Quando fixou-se no Rio de Janeiro, em 1928, foi redator do Jornal do Brasil. Viajou logo depois para Marselha a fim de ocupar o posto de vice-cônsul honorário. A partir daí, segue carreira diplomática até tornar-se, em 1952, embaixador do Brasil na antiga Iugoslávia. A sua dedicação à literatura divide-se entre vários campos de interesse: poesia, romance, conto, crônica e ensaio. Como prosador, publicou, entre outros, A Casa do Gato Cinzento (contos, 1922), A Cidade do Vício e da Graça (crônicas, 1924), Cabocla (romance, 1931), que foi adaptado para a televisão, Dois Retratos de Manuel Bandeira (1960) e Sentimento Lusitano (1961). Como poeta, escreveu o Jardim das Confidências (1921), Poemetos de Ternura e Melancolia (1924), Um Homem na Multidão (1926), Canções de Amor (1930), Noroeste e Outros Poemas do Brasil (1932), Província (1934), Cancioneiro de Dom Afonso (1939), Cancioneiro do Ausente (1943), O Dia É Longo (1944),  Rive Etrangère (1951), Entre Mar e Rio (1952), Le Jour Est Long (1958), Poesias Reunidas (1960) e Longe (1961). Os poemas selecionados para a coluna Florações são do livro Longe (Civilização Brasileira, 1961), escritos quase todos em Belgrado. 

Fonte: Cinco sonetos de Ribeiro Couto, por Luís Araujo Pereira em Florações. Disponível em: http://ermiracultura.com.br/2017/10/29/cinco-sonetos-de-ribeiro-couto/

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOAVENTURA, Maria Eugenia. São Paulo e o Modernismo. Revista Cult, nº 285, Ed. Bragantini, setembro de 2022.

COUTO, Rui Ribeiro. Poesias completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

_________________. O que é o Penumbrismo. De: Ribeiro Couto Para: Rodrigo Octavio Filho. 10-03-1957. Arquivo Ribeiro Couto. Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. Website: https://correio.ims.com.br/carta/o-que-e-o-penumbrismo/ . Acesso em 18 de setembro de 2022.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. 3. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

 

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