Ensaio nº 11 - OS ASPECTOS DA NARRATIVA DO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE

 


 

OS ASPECTOS DA NARRATIVA DO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR DE OSWALD DE ANDRADE

 

A obra Memórias Sentimentais de João Miramar, classificada no gênero romance, foge às regras habituais dessa classificação, atendendo a proposta modernista de romper os padrões estéticos da escrita brasileira já consagrados e calcificados, mostrando-se uma vanguarda na literatura brasileira por trazer características novas, radicais e, de certa forma, perturbadoras, bem distintas, principalmente por ser essencialmente urbana e pelo estilo telegráfico apresentado na forma de uma prosa cinematográfica, descreve suas memórias em uma estética fragmentária, não sendo dividido em capítulos, mas em episódios-fragmentos, numerados, “é o verdadeiro ‘marco zero’ da prosa brasileira contemporânea, no que ela tem de inventivo e criativo” (CAMPOS, 1971, p.12) . Mal compreendido em seu lançamento, no ano de 1924, criaria um hiato de quarenta anos até a sua primeira reedição, em 1943. Chegou a ser comparado ao também revolucionário romance-rapsódia de Mário de Andrade, Macunaíma, publicado em 1928, e posteriormente, a outra obra do próprio Oswald, de 1933, quando foi publicado Serafim Ponte Grande, sendo assim, três obras escritas em tom de paródia,

 “de um linguajar rebuscado e falso e, através dele, a caracterização satírica do status de uma determinada faixa social urbana de letrados bacharelescos a que ela servia de emblema e de jargão de casta. Pelo contraste com as demais partes do livro, essa paródia linguística assume o cunho de um contramanifesto (ou seja: o que não deve ser feito em matéria de escrever é levado ao ridículo, e a linguagem solta e inventiva dos demais episódios é promovida)” (CAMPOS, 1971, p. 6).

Nesta obra, vemos Oswald utilizar paródia linguística e estilística, aproximando-se do que foi feito posteriormente em Macunaíma, sendo a paródia marioandradina mais arcaizante, mais voltada para o linguajar quinhentista, captando as fontes escritas de clássicos portugueses e dos primeiros cronistas que do Brasil recém-descoberto falaram, enquanto que a paródia oswaldiana aproveita os mesmos elementos e critica os excessos e rebuscamentos da língua, o beletrismo oratório-acadêmico típico São Paulo de 1912, ainda província - época em que se passa o romance -, como podemos ver no primeiro parágrafo do episódio-fragmento 132. Objeto Direto: “Ao longo do longo viaduto bandos de bondes iam para as bandas da avenida. O poente secava nuvens no céu mal lavado” (ANDRADE, 1924, p.75), onde vemos o uso de figuras de linguagem como a aliteração, a paronomásia e a prosopopeia empregadas com esse intuito. Oswald fez uma sátira dentro da sátira, como descreve Haroldo Campos no prefácio Miramar na Mira: “A paródia do letrado pedante e pomposo pelo iletrado (ou semiletrado) pernóstico e deslumbrado, tudo dentro de um mesmo círculo vicioso de alienação, acrescenta um novo dado à crítica social e linguística levada a efeito por Oswald” (CAMPOS, 1971, p.11). A paródia é um estilo empregado por James Joyce em sua aclamada obra Ulysses, e por Thomas Mann em Romance de um Romance, obra em que descreve a gênese do Doktor Faustus (1947), admitindo na paródia a sua proximidade com Joyce: "Em matéria de estilo eu hoje não conheço, pode-se dizer, outra coisa senão a paródia. Vizinho, nisto, de Joyce", um recurso usado por Oswald e Mário de Andrade no contexto brasileiro, com ativa função de sátira social.

Em questões inovadoras de estilo, Oswald lançara a técnica cinematográfica no romance brasileiro, caracterizada pela "descontinuidade cênica" e pela "tentativa de simultaneidade”, constantes buscas do modernismo, tornando-se uma constante na obra de Oswald e nas palavras de Antônio Candido (2001), é uma das grandes marcas de inovação de Memórias Sentimentais de João Miramar que se assemelha ao foco de uma câmera filmadora que marca uma descontinuidade cênica ao longo dos163 fragmentos da obra nos retratando partes da vida de Miramar, induzindo ao efeito de uma câmera sendo ligada e desligada por diversas que necessariamente envolve a de montagem de fragmentos, Oswald segue com a sua “sistemática ruptura do discursivo, com a sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa sequência linear, mas como partes móveis de um grande ideograma crítico satírico do estado social e mental de São Paulo nas primeiras décadas do século” (CAMPOS, 1971, p. 26). Pode-se analisar essa fragmentação através das lentes psicanalíticas freudianas, onde “o sonho é conhecido a partir de uma lembrança fragmentária que ocorre depois do despertar” (FREUD, 2006 apud NUNES & COUTO E LIMA, 2015) e as lembranças desse sonho, frequentemente confusas e estranhas, não passam de experiências simuladas por impressões visuais misturadas aos processos do pensamento, ao saber do sonho e às expressões de afeto.

Assim como a turma de 22, Oswald, é influenciado pela estética futurista do Manifesto-Fondazione dei Futurismo, de Marinetti, publicado no Figaro de Paris em 1909, depois em Manifesto técnico delia letteratura futurista, de 1912, com uma “acelerada imagística sonoro-visual”, refletida no romance Majarka, do mesmo autor dos manifestos, estética também refletida em Ulysses, de Joyce.

Como pudemos notar ao decorrer dessa análise, Miramar mantém-se atual por trazer esta técnica cinematográfica, somada à influência futurista e à estética fragmentária, ainda inéditas no Brasil, que acabam por ditar o ritmo de sua obra escrita em tom de paródia, cuja função era a sátira social, onde o riso, conforme a ideia de Nietzsche, tem um caráter punitivo e visa exibir os vícios de uma sociedade arcaica e provinciana como a de São Paulo no início do século XX, assemelhando-se, de certa forma, ao objetivo das comédias de caráter e de costume do século XVII, de Jean-Baptiste Poquelin, o Molière, voltadas a criticar os vícios da corte de Louis XIV, punindo-a com o riso. 

 

 Oswald de Andrade

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, José Oswald de Souza, 1890-1954. Memórias Sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro. Civilização brasileira. 1971.

CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: ANDRADE, José Oswald de Souza, 1890-1954. Memórias Sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro. Civilização brasileira. 1971. p. 3-29.

CÂNDIDO, Antônio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira: História e Antologia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua Relação com o Inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. vol. 8. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

NUNES, Thais Fonseca; COUTO E LIMA, Jarbas. Memórias Sentimentais de João Miramar: Quase Romance, Quase Sonho. Pag. 76-91. Revista InterFACES, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 2, jul.-dez. 2021.

 

 

 

 

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