Ensaio nº 8 - A LITERATURA NOS TRÓPICOS

 


Considerando o conceito de Antônio Cândido em seu texto “Literatura e Subdesenvolvimento” - que traça um panorama geral da literatura hispano-americana de formação, contando com exemplos da influência sofrida pela literatura europeia, responsável pela formação do cânone literário brasileiro assim como de outros cânones dos países vizinhos, “encaremos portanto serenamente o nosso vínculo placentário com as literaturas europeias, pois ele não é uma opção, mas um fato quase natural” (Cândido, 1989, p.151) -, podemos dizer que Alberto Moreiras (2001, p. 203), em “A exaustão da diferença” está equivocado em sua afirmação: "o imperialismo de ordem política e econômica deve ser rejeitado, enquanto o imperialismo de ordem cultural deve ser, ao contrário, completamente aceito, para que, através de uma total apropriação de formas culturais eurocêntricas, a dependência possa evoluir para algo diferente em si”?

Diante do que Antônio Cândido já nos apresentou na “introdução” de “Formação da Literatura Brasileira” ao explorar o tema do processo formativo que segue em discussão até os dias atuais nos círculos literários, ele declarou que:

O leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos primeiros românticos e dos críticos estrangeiros que, antes deles, localizaram na fase arcádica o início da nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas, notadamente o Indianismo, que dominarão a produção oitocentista. Esses críticos conceberam a literatura no Brasil como expressão da realidade local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construção nacional. (Cândido, 2000, p. 25).

 

Dentro deste panorama, ele estabelece a fase arcádica como o ponto de partida da literatura brasileira de fato, mas em “Literatura e Subdesenvolvimento”, ele aborda o gênero que mais sintetizou a nossa cultura de influência europeia e de colonizados, porém, sob nosso próprio enfoque: o Modernismo, considerado uma espécie de emancipação cultural das fontes europeias,

um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas. No caso brasileiro, os criadores do nosso Modernismo derivam em grande parte das vanguardas européias. Mas os poetas das gerações seguintes, nos anos de 1930 e 1940, derivam imediatamente deles — como se dá com o que é fruto de influências em Carlos Drummond de Andrade ou Murilo Mendes. Estes, por sua vez, são inspiradores de João Cabral de Melo Neto, apesar do que este deve, também, primeiro a Paul Valéry, depois aos espanhóis seus contemporâneos.” (Cândido, 1989, p.153).  

Podemos, nesta afirmação, encontrar uma justificativa plausível à afirmação de Alberto Moreiras de se apropriar de formas culturais eurocêntricas e evoluir para algo diferente em si.

Abel Barros Baptista, português, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, discute em sua obra “O Livro Agreste”, no capítulo “O Cânone como Formação”, exatamente esse momento de transição citado por Antônio Cândido ao retomar a comparação da literatura brasileira como um “galho secundário da portuguesa”, usado em “Formação da Literatura Brasileira”, instalando-se no Brasil como se fora um “galho” que

suporta todo o sentido da noção candidiana de ‘formação’: o arbusto é enxertado no Brasil, terreno estranho, mas disponível, aliás propício ao crescimento; um galho medra, mantendo naturalmente características do arbusto donde provém, mas crescendo em consonância com o terreno, até se tornar próprio dele. (...). A literatura persiste expressão do país, mas a formação acompanha a formação do país, expressão e ao mesmo tempo fator da construção nacional” (Baptista, 2005, p. 61).

É defendendo a mesma tese de “aclimatação literária” que Abel Barros Baptista segue e, com o passar do tempo, vai adquirindo características cada vez mais próprias que não mais será comparada à literatura portuguesa, concretizando-se a ideia de Alberto Moreiras. A literatura brasileira bebeu antes em fontes estrangeiras para produzir suas obras e se manteve culturalmente dependente e mantendo as mesmas características das escolas europeias criadas lá, como o Romantismo, o Realismo e as três escolas mais criticadas por Cândido: o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, então, para se criar uma literatura com traços e um estilo realmente brasileiro, isso somente foi possível com a chegada do “Modernismo de 22” onde se discute se houve uma ruptura ou uma “deglutição” de tudo o que foi produzido na Europa para se criar uma estética literária essencialmente brasileira, uma revitalização ligando o passado à tendências atuais e assim criar-se uma nova fonte de influências para que as próximas gerações de autores nela bebessem, onde Baptista cita o exemplo de João Cabral de Melo Neto e a “Geração de 45”, afirmando que

“na verdade, a ruptura não se fazia em nome do novo e do moderno, nem apenas por influxo do europeu: romper com o estado de coisas vigente, combater o beletrismo acadêmico e parnasiano, culpado de macaquear a cultura europeia, significava também liquidar na cultura brasileira a presença do outro, do estranho, do não brasileiro – ainda que por via da antropofagia -, e assim recomeçar em direção a uma literatura genuinamente nacional. E nem só por razões de estrita natureza literária” (Baptista, 2005, p. 44).

Contrapondo-se a Antônio Cândido, Anita Martins Rodrigues de Moraes tece uma crítica ao ponto de vista sobre a função humanizadora da literatura defendida por ele em “O Direito à Literatura”, de 1988. “Algo no argumento de Candido não se fecha. Como a literatura se mantém inacessível à ampla maioria (...) se é universal, se está em toda parte? A resposta está na formulação: “literatura concebida no sentido amplo”. Não falta acesso a esta literatura, mas à literatura stricto sensu, ou seja, à literatura erudita.” (Moraes, 2017, p. 2 e 3). Ela mostra a visão pessimista de Cândido sobre o Regionalismo, considerado por ele como um atraso que “Ele existiu, existe e existirá enquanto houver condições como as do subdesenvolvimento, que forçam o escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura urbana”. (1989, p. 86). Ao final, ela conclui que “Uma diferença, contudo, é decisiva: não há, da parte do antropólogo, nenhuma expectativa de que a expansão capitalista, que a tudo tritura e incorpora, deixe outro legado que a mais vasta destruição. Talvez, e com isto encerro” (Moraes, 2017, p. 2 e 3). Essas análises e afirmações que Anita nos expõem seguidas de sua consideração final, altamente pessimistas, nos fazem refletir como Antônio Cândido pensa na formação de um cânone literário brasileiro que exclui uma parte importante da literatura nacional que retrata a cultura popular de forma direta, um ingrediente fundamental na receita de uma literatura com estilo próprio. É um ponto a se repensar sobre os conceitos da emblemática figura do crítico.

Apropriar-se de formas culturais eurocêntricas abraçando o imperialismo cultural e evoluir para algo diferente em si, é algo que realmente conseguimos realizar? Vejo que sim, mas a duras penas. Essa é a visão evolucionista que Antônio Cândido, talvez inspirado pelo antropofagismo modernista de 22, defendeu da construção e evolução do cânone literário brasileiro - de dependente culturalmente a genuíno –, uma visão com prós e contras que continua sendo revista e questionada, até pelo próprio autor como vemos no prefácio da 6ª Edição de “Formação da Literatura Brasileira” onde ele diz: “como eu não o lia há cerca de 10 anos, pude sentir bem o peso do tempo sobre ele”, depois, “o que somos é feito do que somos, de modo que convém aceitar com serenidade o peso negativo das etapas vencidas” (Cândido, 2000, p. 25). Atualmente nos apropriamos não somente da cultura europeia, mas da norte-americana, da asiática, de outros países com menor destaque mundial - como os países africanos, por exemplo - na onda globalizante e hiperconectada pela internet, além da nossa própria cultura popular, aquela do nosso cotidiano e dos nossos regionalismos, mesmo menorizada e menosprezada pelo crítico, para assim manter nosso cânone em constante expansão.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Ø  BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste. Campinas: Editora Unicamp, 2005.

Ø  CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 140-162: Literatura e subdesenvolvimento.

Ø  _________________. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 2000.

Ø  MORAES, Anita Martins Rodrigues de. A função da literatura nos trópicos: notas sobre as premissas evolucionistas de Antônio Cândido. Revista Cerrados, Universidade de Brasília, nº 45, ano 26, 2017, p. 41-54.

 

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