Resenha nº 6: A MATRIZ, por T. E. LAWRENCE

 


Seguindo com A MATRIZ, finaliza-se a análise das duas obras mais famosas e historicamente relevantes de T. E. Lawrence. Escrito a partir de 1922, porém publicada postumamente, apenas no ano de 1955, a pedido do próprio autor que afirmou que o livro não deveria ser publicado até depois de sua morte, cuja nota introdutória de seu irmão, A. W. Lawrence, para a edição inglesa, ele explica que editou o texto para publicação e uma carta de T. E. Lawrence para E. M. Forster (renomado romancista e ensaísta britânico), essa explicação é resumida: "ele se sentiu incapaz de publicar o livro por causa do 'horror que os companheiros comigo na força sentiriam se eu os entregasse... então The Mint não será distribuído antes de 1950".  A. W. Lawrence ainda tomou a precaução adicional de substituir "novos nomes" na edição expurgada por personagens do esquadrão de A/c Ross "em todas as passagens que pudessem ter causado constrangimento ou angústia"¹, observando que seu irmão tinha "pretendido, de fato, imprimir uma edição limitada ele mesmo em uma prensa manual, e já havia obtido cópias suficientes para seu frontispício de uma reprodução... de um desenho de retrato de Augustus John, agora no Ashmolean Museum". O próprio Lawrence escreveu: "Vou legar a você minhas anotações sobre a vida no campo de recrutas da R.A.F. [que se tornou The Mint]. Elas vão decepcioná-lo".

Vê-se nesta obra uma narrativa muito diferente da precedente, um relato autobiográfico observado de perto de suas experiências na RAF (Royal Air Force), cobrindo seu treinamento inicial na RAF Uxbridge, em 1922, e uma parte de seu serviço na RAF Cranwell, em 1925–26. Com 319 páginas - publicada pela Ed. Record, no Brasil -, praticamente o oposto de sua obra mais brilhante, sem aquela paixão, entusiasmo e a polida linguagem de literato, substituída por um "inglês de garagem" nesta "literatura de caserna", como descreve no Prefácio, Fernando Monteiro, também tradutor desta edição. No ato da publicação geral da obra, em 1955 na Inglaterra, duas edições foram lançadas: a edição expurgada e uma edição limitada contendo o texto completo sem censura. Todo o atraso na publicação e a minuciosa análise do texto completo diziam respeito principalmente à referida "linguagem de quartel" e descrições explícitas das funções corporais, tidas como ofensivas por algumas pessoas. Na edição brasileira, Fernando Monteiro traduziu o texto integralmente, ou seja, sem censuras, entregando ao leitor lusófono a realidade nua e crua da caserna.

O livro é dividido em três partes:
 
Parte I: 'A Matéria-Prima', com 29 capítulos (muitos têm 2 ou 3 páginas); 
Parte II: 'No Moinho', com 22 capítulos; 
Parte III: 'Serviço', com 18 capítulos. 
 
Como se vê, a obra é composta por capítulos breves, o que confere uma leitura razoavelmente rápida.  O título do livro, A MATRIZ, deve-se à comparação do treinamento da RAF a uma fábrica de moedas, sendo os homens "A Matéria-Prima" (parte I) e a vida no campo de treinamento como sendo "No Moinho" (parte II) que carimba as moedas do metal em branco. No decorrer da leitura, nota-se que Lawrence parece ter desejado que sua vida passada e fama fossem obliteradas, quando escreveu a Edward Garnett²: "A Força Aérea não é uma escravidão humilhante e esmagadora de homens, todos os seus dias. Há sol e tratamento decente, e uma medida muito real de felicidade, para aqueles que não olham para frente ou para trás". 
 
The Mint diz respeito ao período após a Primeira Guerra Mundial, quando Lawrence decidiu desaparecer da vista do público, jogando fora todas as suas condecorações, incluindo uma patente sênior no exército (coronel), medalhas de bravura e tudo mais, alistou-se como um recruta anônimo sob um nome falso "352087 - Aircraftman Ross", procurando tornar-se um aviador comum e obter a falsa paz da caserna, apenas para obedecer sem questionar, fugindo de ninguém menos que ele mesmo e o "demônio" vivente dentro de sua lendária personagem, Lawrence da Arábia (alcunha por ele considerada detestável, criada por Lowell Thomas, um jornalista estadunidense), em um ato de total despojamento e desilusão, consequência dos atos perpetrados pelos "políticos e negociadores da desonra, em Versailles", conforme dito por Fernando Monteiro.  Vemos aqui uma narrativa de denúncia contra o alistamento e gritando a altos brados as absurdas ordens dadas durante o treinamento dos recrutas da RAF e do exército britânico, as humilhações sofridas, o esgotamento físico a que chegam, as bizarras punições, todos os mínimos detalhes sofridos durante os percalços enquanto recruta, relatos que causaram um forte desconforto e escândalos entre os oficiais destas instituições britânicas e chocando a opinião pública, chegaram a pensar que Lawrence estava mesmo desequilibrado por expor tamanhas demonstrações de humilhação perpetradas aos recrutas.

Talvez, o capítulo mais absurdo seja de número 19 da primeira parte: "SHIT-CART" ou "O CARRO DA MERDA": "Às oito da manhã somos quatro soldados de pé no pátio de manobras, desgostosos da vida. Era a nossa vez de esgotar o chamado carro da merda, numa segunda-feira em que o dia pesa duas vezes mais.", e assim começa o capítulo que depois evolui para a execrável ordem dada aos recrutas de esvaziar o tanque de dejetos humanos e de cozinha, sem o mínimo fornecimento de equipamentos de proteção necessários (nem deveria existir naquela época), tendo eles que literalmente porem a "mão na massa" e se lambuzarem de todos os dejetos em contato, um espetáculo degradante ao extremo, típico de prisões do terceiro mundo ou de prisões de trabalho forçado que ao final do dia, ficavam de "molho" para amolecer a crosta de sujeira que colava ao corpo para depois tomarem banho com escovão esfregado com o auxílio dos colegas recrutas. 

Outro capítulo que é de revirar o estômago é o de número 25, "AJUDANTE DE COZINHA". Nesse capítulo, Lawrence narra a nojenta tarefa que os homens realizam na cozinha e o porque ele decidiu se tornar vegetariano. Não há a mínima condição de higiene com o manuseio dos alimentos consumidos por todos, do baixo ao alto escalão, sendo que os de melhor qualidade  destinados certamente aos de ao alto. A carne bovina era recebida em sacos de tecido, já em estado de putrefação devido a falta de refrigeração, então eram fervidos, depois espalhados na grama e usados para cozinhar, isso o levou a ter asco de comer carne, tornando-se vegetariano, sem contar no preparo das outras refeições. Esse capítulo me faz lembrar um pouco da situação vivida por George Orwell descrita em seu primeiro livro, "Na Pior em Paris e Londres" ("Down and Out in Paris and London").

O tom narrativo de Lawrence é de um sarcasmo sutil, ironias e do pleno uso de palavrões quando necessário. As situações expostas tanto no livro anterior quanto neste, caberiam positivamente em um livro de ficção, pois o absurdo caminha lado a lado com o habitual, porém, aquele, em grau elevado, mas tratam-se de fatos quotidianos, o que mais pode espantar o leitor.
 
Não é segredo que os exércitos ao redor do mundo tem um dos piores tipos de tratamento dispensados aos seus recrutas, seja nos países de primeiro ou terceiro mundo, todos estão sujeitos às piores ordens e subordinações com o intuito de aprenderem a realizar toda e qualquer tarefa sem o menor grau de questionamento, obedecendo ordens como robôs, hábitos que podemos ler desde o treinamento das tropas espartanas da antiga Grécia. Podemos ver filmes como aquele dirigido por Stanley Kubrick em "Full Metal Jacket", que justamente mostra o treinamento antes dos soldados americanos antes de partirem para o Vietnã, local de guerra que também ambienta "Apocalypse Now", dirigido por Francis Ford Copolla, adaptado do romance "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad, que mostra os maiores absurdos cometidos pelo exército americano, resultado de treinamentos humilhantes, para não falar do filme "Men of Honor" culminando com o seu final dramático e sangrento. 
 
O livro recebeu diversas críticas, inclusive especializadas, como do anteriormente citado, o romancista E. M. Forster, que se correspondeu com Lawrence, e em 1929, escreveu-lhe duas cartas detalhadas, como um amigo literário afiado, criticando The Mint, pois não ficou feliz com a conclusão do livro, sentindo-o sem sal e passando uma imagem forçada de ser justo. Mas ele gostou muito dos capítulos 9 e 10 da parte III, no dia do funeral da Rainha Alexandra, e "Dance Night", quando um soldado tem seu primeiro encontro sexual. Revendo as cartas de Forster, Jeffrey Meyers escreve que "Forster julgou corretamente 'The Mint' desigual a 'Seven Pillars'³".
 
Outra crítica, mais uma das várias, a título de um segundo exemplo, feita por Thomas J. O'Donnell estuda e compara The Mint e Seven Pillars em busca de pistas sobre a personalidade de Lawrence, escrevendo que "em "The Mint" Lawrence de fato, afirma sua vontade de domínio, afirma-se contra a autoridade e lidera a partir das fileiras", usando sua escrita para "mantê-lo conhecido, incorporar suas complexidades e perpetuar sua dramatização de si mesmo".

 
Por Caio A. Zini



¹Note by A. W. Lawrence (his brother), The Mint, pages 7-10.
 
²Lawrence, T. E. The Mint. 1955. Letter to Edward Garnett quoted in Note by A.W. Lawrence. page 8.
 
³Meyers, Jeffrey (1998). "E. M. Forster and T. E. Lawrence: A Friendship". In Stape, John Henry (ed.). 
 
4Forster, E. M.: Critical Assessments, Volume 1. Routledge. p. 153. ISBN 9781873403372.
O'Donnell, Thomas J. (2012). "The Assertion and Denial of the Romantic Will in Seven Pillars of Wisdom and The Mint". The T. E. Lawrence Puzzle. University of Georgia Press. pp. 71–96





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