Conto nº 2: UM AMANHECER ATÍPICO - Pt. 2


UM AMANHECER ATÍPICO - Parte 2


Quem estava sentada ali na sua cadeira, na sua mesa, bem, ao vê-la, Eleonora teve a sensação de tomar um banho gelado, como se alguém desse a descarga durante um banho quente, de tamanho o susto que ela teve, era ninguém menos que Alice, sua antiga chefe que se tornou amiga pessoal, mas, bem, como se explica isso, ela havia morrido há dois dolorosos e pesados anos. Quando a viu, Eleonora simplesmente congelou, derrubou sua bolsa, enquanto Alice achando sua reação estranha, levantou-se e foi falar com ela, levando-a ao banheiro e assim seguiram caladas. Chegando lá, Alice perguntou:

- O que está acontecendo, Eleonora? 

- ...

- Você está passando mal? repetia por mais duas vezes seguidas.

De repente, Eleonora irrompe com um grito:

- Como você está viva???? Como????

Perplexa com a pergunta, Alice a indaga:

- O que você está perguntando? Desde quando morri? Bebeu o que no café hoje? Sei que não vai com a minha cara, mas fazer essa pergunta já é demais... não é porque é minha chefe que tem que pisar no tomate assim... vou voltar pra minha mesa.

- Sua chefe? Eu? O que mais tá acontecendo aqui? Não estou entendendo nada de hoje. Não sei o que há entre nós aqui neste hoje especificamente, mas nada faz sentido. Me mostra onde é minha mesa, por favor?

- Oras, logo atrás da minha, onde sempre foi. Hoje você tá muito estranha, parece que nunca me viu aqui ou veio de outra realidade. Já tomou café? 

Pensando em uma resposta plausível, Eleonora dispara:

- Hoje tive um sonho super estranho, sabe Alice, nele você tinha morrido em um acidente, mas você era minha chefe e foi muito impactante te ver aqui, este sonho mexeu comigo e acordei mal.

Parece que a desculpa esfarrapada colou...

- Nossa... nem sei o que te dizer, Eleonora, que sonho péssimo, eu também ficaria assim, bom, mas vamos voltar pras mesas senão vão começar a perguntar, diz que teve uma queda de pressão e toma um café.

- É o que vou fazer. Café e depois mesa. Obrigado, amiga, ops, desculpe, Alice. - Me esqueci que hoje ela não é minha amiga, e está viva! Não sei se fico feliz ou piro.

Alice sai com um olhar estranho lançado sob Eleonora, desconfiado, suspeitando de algo muito estranho, porém familiar ao mesmo tempo, sabendo no fundo que aquela não era a Eleonora que ela conhecia e amava detestá-la e temê-la, aquela chefe irritante e trifásica (sim, ela tinha três fases de humor bem distintas: calma, explosiva, amável, não necessariamente nesta ordem), mas sim uma Eleonora amiga, terna, pau pra toda obra, e achou estranho sentir isso. Segue para sua mesa e toca seu trabalho.

No café, Eleonora ainda se sentindo mais perdida que cachorro ao cair do caminhão de mudança, toma um café duplo expresso sem açúcar com a intenção dar um corte naquela loucura toda que a cada minuto ficava mais e mais cabeluda, mas daquelas cabeleiras embaraçadas que nem um rastelo desembaraçaria. Ainda pensando no choque, ela bola um plano para sair do escritório e tentar voltar pra casa, é, aquela casa que não era sua casa, na verdade, afinal, ela tinha que descobrir o que estava acontecendo senão iria se internar porque estaria completamente louca, fora de si, ou drogada por alguém, não tinha explicação lógica.

De volta à sua sala, Eleonora encontra sua mesa, senta-se, observa os porta-retratos da filha e do marido, pensando que tipo de mãe ela era: meiga? Falsa? Amiga? Autoritária? Seria ela uma esposa amável? briguenta? Tarada? Frígida? Com ou sem amante? As perguntas fervilhavam, o mesmo se fazia sobre ser chefe, mas podia perguntar ali, só que soaria estranho, no mínimo. Olhava os relatórios na mesa para assinar, rever, corrigir, abria as gavetas, viu o retrato de um homem desconhecido e ela abraçados, seriam amantes? Inúmeras perguntas não respondidas, será que um dia encontraria respostas? Enfim, resolveu deixar as interrogações de lado, pois não seriam respondidas naquele momento. 

Já sabia o que faria na sequência, simplesmente uma visita à sua casa, quem sabe encontrasse respostas, ou um meio de normalizar a situação, pois até ver seu reflexo era estranho, não estava acostumada a tingir seus cabelos, aliás, se detestou de loira. Os retratos em sua mesa de seu marido e filha, a intrigavam, ficava se questionando como acontecera aquele casamento que nunca acontecera em sua vida real e a filha, lembra-se das conversas que tinham no namoro, brincavam que se tivessem uma filha, se chamaria Marie Louise, e se fosse homem, Edgar. Chamaria ela Marie Louise? Onde se casaram? As perguntas ainda fervilham. Ela nota Alice a espiando pelo canto do olho, se sente mal, como se um fantasma a olhasse, não sabe o que sentir, esta manhã está sendo demais para Eleonora que se levanta, fala com seu superior, diz que não está se sentindo bem e parte, mas antes, passa na mesa da amiga que hoje vive novamente, levemente pousa a mão em seu ombro, elas se olham como se telepaticamente se comunicassem, Alice retribui colocando sua mão sobre a dela em seu ombro e em silêncio se despedem.

No carro, sentada ao volante e com o cinto de segurança afivelado, ela decide passar no cemitério onde sua amiga está (ou estava) sepultada. Ao chegar no local, vai até onde a lápide está e constata que realmente ela está viva, pois outro nome, desconhecido, encontra-se no local. Passa pela administração, pergunta se já houve tal sepultamento e dizem que nunca constou tal nome. Passada, decide ir para sua casa. Durante o trajeto, nota muitas diferenças, casas que não existiam, prédios, lojas desconhecidas, umas que já foram à bancarrota, mas hoje estavam lá, firmes e fortes, mesmo uma mansão histórica, revivida e reformada, outras lojas que ela jamais vira, enfim, uma realidade muito estranha, nem parecia a mesma cidade que ela vira ontem, mais limpa, mais organizada. Enfim, ela chega ao ponto final, sua casa, mas vai até a banca ao lado do prédio (que nunca existira), pega o jornal que ontem chamava O Estado, hoje se chama A Província, olha-o com estranheza. Abre a carteira para pegar o dinheiro e assustada, vê que o Real se chama Réis e consta Império do Brasil, como antes de 1889, mas com a data atual e o sangue lhe falta, assim como ar fica difícil de se respirar, o país voltara a ser Império, ou nunca deixou de ser. Pega o troco e vai ao apartamento.

Ao abrir a porta, joga a bolsa no sofá e checa se há alguém, quando correndo a filha aparece enrolada no lençol e pergunta apavorada o que a mãe fazia a essa hora em casa, quando Eleonora diz que não estava se sentindo bem e lhe devolve a pergunta e complementa pedindo explicações de estar enrolada no lençol quando vem um garoto, provavelmente seu namorado, mas não tão garoto, uns dez anos mais velho que ela deixa partir e ao fechar a porta lhe pede explicações que são interrompidas pelo soar do telefone, a filha atende e diz: "Marie Louise", que causa surpresa à mãe pela constatação, e era o RH da empresa dela, somente confirmando se chegou bem e se precisava de alguma ajuda, o que imediatamente é negado por ela. Marie Louise diz que vai se lavar e depois voltar às aulas, teria o período vespertino completo, implora à mãe que não conte ao pai sobre o ocorrido com seu amante.

Após a partida de Marie Louise, Eleonora sente-se finalmente só para processar o que só nesta manhã já tivera e não sabe se terá estrutura para terminá-lo, como iria encarar o desconhecido marido, agora com esta história absurda da filha com um amante mais velho, quantas coisas cabeludas em tão pouco tempo, logo com ela que tinha uma vida tão equilibrada vivendo só. 

Eleonora faz um lanche rápido, passeia pela casa, olha o quarto da filha, a cama bagunçada, lingerie sobre ela, cigarros apagados, preservativos, a situação era realmente preocupante, como lidar com isso justo ela que nunca tinha sido assim, nem mãe, uma criação absolutamente diferente. Calmamente, ela vai ao quarto e se olha no espelho retangular que fica na parede ao lado da porta, caminha lentamente até ele, quase encostando seu rosto e, de repente, ela vê seu "eu real", a Eleonora com cabelos normais, negros, sem mexas e se afasta, ambas se movimentam e percebem que são suas versões originais, ela percebe que do outro lado do espelho está a Eleonora que pertence ao corpo que ela ocupa, ambas querem voltar ao seus corpos, esticam o braço direito uma para outra, caminham de volta ao espelho, tocam seus dedos e um choque as faz desmaiar, tombando inertes no carpete do quarto. 

Atordoada, Eleonora abre seus olhos, sentindo-se mal, consegue recuperar um pouco de suas forças, põe-se de pé, vira-se para o espelho e assustada, vê-se incrível e novamente de volta à sua velha forma, sem mexas e com a roupa que seu outro eu estava usando, ou melhor, agora ela mesmo a usava. Ficou pensando em seu outro eu, como ela acordara do outro lado do espelho, se estaria tão aliviada como ela. Nunca se sentira tão feliz por voltar à casa de uma viagem, mas uma viagem esquisita, sem sair da cidade, mas tão distante, tão diferente, lembrava daquele velho filme, com Michael J. Fox e Christopher Lloyd quando vão para um presente diferente, mas era o mesmo lugar, só que ela viajou sem a ajuda de um carro, sabe-se lá como, talvez nunca saiba o que de fato ocorreu, a quem perguntaria? Jamais diria a ninguém, e agora? Como iria explicar a bagunça que seu outro eu causou, ela nem sabia o que ela lhe causara no trabalho, onde mais estivera, era muita sujeira pra limpar, o que pensar e reagir, e o pior, não ver Alice novamente, o mais doloroso de tudo isso. O telefone toca, ela levanta e o atende. 

 

Fim... ?

 

27/07/2024 - Caio A. Zini







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RESENHA nº 1 - Curta-metragem CUERDAS, de Pedro Solís García

ENTREVISTA nº 3 - LUCIANA FÁTIMA, pesquisadora do escritor Álvares de Azevedo.

ENTREVISTA nº 1 - MARGARET JULL COSTA, tradutora literária.