Conto nº 3: QUARTO VAZIO

 

Logo de manhãzinha ela prepara o café como ele gostava, puro, pouco açúcar. O preparo ela fazia ouvindo músicas que ele ouvia pelas manhãs e que ela aprendeu a gostar, mesclando com aquelas que ela o fez gostar ao longo do tempo, as preferidas dela que ele pedia que ela cantasse junto porque simplesmente amava ouvir seu sotaque e seu ritmo próprios, aquele jeitinho que o fez amá-la em todas as suas células do corpo. Entre os dois sempre houve um mútuo compartilhamento de ideias, de risadas, de histórias da vida, de folias, de alma. Enquanto as músicas tocavam ao fundo, ela dançava e cantava só, como se sentado alí ele estivesse a observá-la e achar graça, comme d'habitude. Café pronto. Ela se senta e se serve em sua mesma cadeira, ao mesmo tempo que observa a dele, vazia, ausente. A data presente era a que eles se falaram pela primeira vez que foi durante a faculdade, em uma conversa despretensiosa e sobre amenidades do curso, então desde esse dia algo nasceu, se desenvolveu e se transformou. Sempre nesta data ela sofre com o vazio deixado por ele, pela falta das conversas, do carinho, dos momentos íntimos, de simplesmente estarem juntos, mesmo que em locais diferentes, de se sentirem telepaticamente.

Deixa a cozinha e vai passear naquele quarto transformado por ele em escritório, onde costumava escrever e trabalhar, às vezes, bisbilhotava um livro, pois tempo para ler era escasso e geralmente ele caía no sono e o livro no chão, levando uma vida para terminá-lo. Ela olha para o livro inacabado que ele deixou por ler sobre a escrivaninha e o abre na página com o marcador, exatamente onde ele parou, e pela enésima vez ela o terminara, fazendo o que ele não pudera, eis que, de repente, um quadradinho dobrado cai da contracapa, era um bilhete que ele fez a ela, declarando seu amor, sabe-se lá de quando, mas interminada, ele era lento a escrever no que tangia aos seus sentimentos por ela. Surpresa e emocionada, lágrimas ela verte e molham o papelzinho, dobra-o novamente e o põe de volta na contracapa.

Lentamente ela se levanta, passa a mão pelos móveis empoeirados que incapaz foi de limpá-los e de mover qualquer simples objeto que ele tenha tocado lá dentro, assim tem sido desde sua partida. Ela olha os quadros com as fotos dos dois em várias viagens que ele mantinha espalhadas pelo pequeno cômodo, momentos felizes e de descoberta, assim ela lentamente se despede e fecha a porta devagarinho, como ela costumava fazer para não atrapalhá-lo. Silêncio. 

Ausência, o vácuo deixado pela alma companheira. Luto, a incompreensão da partida da pessoa amada,  venerada.  Ambos sentimentos se misturam, se complementam na eterna sensação de incompletude, de deslocamento, um vazio imensurável que se faz doer com mais intensidade nos momentos mais solitários do ano. A luz se esmaece e o vento sopra lá fora varrendo as folhas secas no quintal.

Eis aqui o que ele dizia a ela no bilhetinho:

"Morgane, querida mulher, amante, companheira, confidente, amiga de jornada. Saiba o quanto é difícil expressar meus sentimentos, me abrir, mesmo que seja para você, a pessoa que amo e venero mais do que tudo. Adoro ver seus cabelos vermelhos flamejantes ao vento, esvoaçantes, adornando esse lindo rosto anguloso com lábios finos e sorriso ora de menina faceira, com ares de mistério e enigma, ora de menina danada, querendo mais do que dengo, de qualquer forma, me fascina, me acelera o coração e me acende o desejo. Em seus olhos eu vejo uma velha alma de 3.000 anos, assaz inteligente e sensível, que sabe sempre a palavra certa e na hora, mescla uma certa dose de melancolia com uma paixão pela vida, por vezes um paradoxo, amando a folia e o silêncio, todos esses detalhes continuam sendo o segredo do que sinto por você e garanto que se morrer hoje e nos encontrarmos de novo em outra vida, vou te reconhecer, mesmo que seja eu uma mulher e você um homem, seu olhar é a assinatura de sua alma, vou me apaixonar por você quantas vezes nossos olhares se cruzarem, em qualquer universo, realidade ou tempo, somos atemporais, nosso coração bate em uníssono, amalgamados".  


05/07/2024 - Caio A. Zini


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