Resenha nº 11: O CASO MEURSAULT, de KAMEL DAOUD (Meursault, contre-enquête) - Parte 1

 

PARTE UM - O CASO MEURSAULT - KAMEL DAOUD

 

O CASO MEURSAULT (Título original: Meursault, contre-enquête), escrito pelo argelino KAMEL DAOUD, é a resposta ao romance O ESTRANGEIRO - escrito pelo francês pied-noir, ALBERT CAMUS -, uma espécie de "romance-espelho", uma resposta à dominação colonial francesa na Argélia. Se então você não leu este romance, não adianta ler o escrito pelo argelino. 

Publicado no ano de 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, o romance camuseano narrado em primeira pessoa, conta a história de Meursault, um pied-noir (colono francês que vivia na Argélia), que matou um jovem árabe anônimo sem qualquer motivo aparente – ele culpou o incômodo com o sol e o calor úmido pelos cinco tiros, aparentemente portava uma faca também, mas os cinco tiros revela que não foi em defesa própria, pois apenas um tiro resolveria a situação. Meursault é caracterizado como um anti-herói misantropo, frio, desapegado/desconectado das pessoas, solitário, uma figura que se enquadraria como um psicopata por não sentir empatia pelo próximo, embora sinta atração física e sexual por mulheres. O romance serve como um exemplo para ilustrar a filosofia existencialista formulada pelo autor e que nos anos seguintes, viria a formular: "a vida é guiada pelo absurdo e, portanto, não tem nenhum sentido ou propósito definido por forças divinas ou cósmicas". “Tentei fazer meu personagem representar o único Cristo que merecemos”, afirmou Camus sobre seu anti-herói. De acordo com ele, "a única possibilidade de redenção do homem moderno estava na rebeldia – na recusa lúcida de ideologias políticas ou religiosas". Logo no início da obra vemos a frieza de como ele recebe a notícia da morte da mãe, praticamente banalizando o fato, aliás, não sei quem é mais frio, se a personagem ou a mão que segura a pluma. Eu caracterizaria a obra camuseana de uma escrita desértica, seca, estéril, quase sem vida nesta obra, retratando com perfeição o deserto que era Meursault por dentro.

O fato do árabe ter sido retratado de forma anônima, aliás, os companheiros do árabe também foram, mas por qual razão? Seria Camus um colonialista preconceituoso, racista, eurocêntrico, crente na supremacia europeia? Não, caros e caras, pelo simples fato de retratar com o máximo de realidade como eram os "nativos" na visão do colonizador branco prevalecente. Digamos que o anonimato do "árabe colonizado" contribui para o senso de alienação de Meursault em relação aos seres humanos de qualquer raça, um fato, infelizmente, muito comum entre os colonizadores perante os colonizados, é difícil não ver um tipo de racismo na atitude até mesmo dos europeus liberais daquela época, como Camus e outros escritores contemporâneos, como George Orwell e Joseph Conrad, por exemplo, talvez uma maneira amplamente inconsciente de preconceito da parte deles, mas até hoje muito desconfortável ​​reconhecer o fato.

Voltando ao romance de Kamel Daoud, vencedor dos prêmios Goncourt, Cinco Continentes e François Mauriac, a edição brasileira foi publicada pela editora Biblioteca Azul em 2016, com 168 páginas. "O caso Meursault" foi publicado na Argélia em 2013 e, no ano seguinte, na França. A releitura do escritor argelino é muito ousada, pois ele reescreveu "O Estrangeiro" do ponto de vista dos árabes que não têm voz no livro de Camus. Nele, uma narrativa em primeira pessoa, o árabe anônimo é batizado de Moussa (Moisés, em árabe) e quem narra as consequências de sua morte - o assassinato de um homem árabe em uma praia às 14h, sob um sol escaldante -, em primeira pessoa, é seu irmão, Haroun (Arão, irmão de Moisés, em árabe), o narrador personagem que conduz o olhar do leitor a um repórter universitário, a pesquisar e escrever sua própria tese acerca do fato, que o recebe em um bar da cidade argelina de Orã - a mesma que se passou "O Estrangeiro" e também cidade natal de Camus - e grava a entrevista que dura até o fim da obra. Durante a entrevista, Daoud além de narrar a vida de Moussa, Haroun, e sua mãe, sob a visão dos argelinos, paralelamente revisa não só "O Estrangeiro", mas também outras obras do autor sem mencioná-las explicitamente, mas quem as leu irá notar. O cenário narra também a transição de colônia a país livre, realizando uma profunda reflexão das questões coloniais e pós-coloniais, cuja independência se dá em um conflito armado que dura de 1954 a 1962, onde a FLN (Frente de Libertação Nacional) venceu e, após vários conflitos, a França teve que reconhecer sua derrota, dando-lhes a independência que foi formalizada na data de 5 de julho de 1962, encerrando o ciclo de 132 anos de dominação francesa no país africano. Levando em conta esse cenário, o autor repassou alguns momentos de terror que ocorreram durante a desocupação francesa, como o Massacre de 5 de Julho, em Orã, onde os colonos foram fugindo e abandonando suas propriedades e, durante essa fuga, os argelinos eram livres e até incentivados a matarem colonos, se necessário, tomando suas propriedades. 

Uma característica interessante, o autor confere às cidades personalidades femininas, tratando, por exemplo, a cidade capital de Argel, uma velha prostituta que abre suas pernas ao mar, assim como as cidades de Orã e Hadjout. O autor faz questão de abordar a transição da cultura colonial opressiva da França para o nacionalismo árabe e o radicalismo islâmico que se instala no país após a saída dos colonizadores, fechando a nação argelina nela mesma e deixando uma herança de más lembranças que se mantém até os dias atuais entre os dois países. É importante lembrar que a Argélia juntamente com a Indochina tiveram as desocupações mais sangrentas da história das colonizações.

 

Caio A. Zini

 

 


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