Resenha nº 11: O CASO MEURSAULT, de KAMEL DAOUD (Meursault, contre-enquête) - Parte 2

Meursault, contre-enquête. | Amazon.com.br

 

PARTE DOIS - O CASO MEURSAULT - KAMEL DAOUD

Em sua obra "O Mito de Sísifo", um ensaio filosófico de 1941, Camus explica que o absurdo é comparado a Sísifo, personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a, todos os dias, empurrar uma pedra de mármore morro acima para que novamente rolasse abaixo em um interminável e penoso ciclo, assim como Haroun é condenado a repetir a história da morte infame de seu irmão todos os dias num bar de Orã, a segunda maior cidade da Argélia. Quem o ouve é um “investigador universitário”, um jovem francês que carrega uma edição de "O estrangeiro" na bolsa e vai tomando nota a cada dia de entrevista. Daoud, a cada capítulo contrapõe a "O Estrangeiro" com a interpretação de Haroun sobre os fatos que cercam o alegado crime ocorrido com seu irmão Moussa e o que ocorreu após com ele e sua mãe. Nessa narrativa ao repórter, Moussa é descrito como um jovem de aparência viril, com barba de profeta, carregava caixas na feira. Haroun era criança quando ele foi assassinado, morava com a mãe que amava mais seu irmão e acabou por jamais aceitar o fato do corpo do filho não ter sido encontrado e ninguém ter feito nada por ele, iniciando assim uma cruzada em busca de seu corpo e encontrar familiares de Meursault, o que foi infrutífero. O imperdoável para Haroun é a indiferença com a qual seu irmão foi tratado, principalmente por ter sido tratado como o "árabe" durante a narrativa camuseana de início ao fim, pois "árabe" não identifica nação alguma e nem ele nem seus colegas se viam daquela maneira. O corpo de Moussa desapareceu, então o que há é um enterro fictício e tanto ele quanto sua mãe seguem anos a fio em um eterno luto e uma eterna busca por informações sobre o corpo, já que ninguém está tratando, então Haroun descreve o errático comportamento obsessivo de sua mãe que ceifou a infância e adolescência do filho remanescente, desencadeando uma corrente de conflitos pessoais em sua vida que vive à sombra de seu irmão. A figura da mãe de Moussa e Haroun é a figura de uma mãe castradora, mas no caso desta, não aceitando a morte de Moussa, ela estraga a vida de Haroun, culpando-o silenciosamente por estar vivo no lugar do outro, fazendo-o pagar o preço e sentir o peso da ausência forçada do irmão, perdendo assim a infância e adolescência em buscas infrutíferas pela "verdade" sobre a morte do irmão.

A reviravolta acontece quando Haroun e a mãe, em uma noite dos primeiros dias de independência, invadem a casa da família Larquais, colonos franceses que sua mãe trabalhava na cidade de Hadjout, que estava supostamente abandonada, e por volta das 2h da manhã (Moussa é morto por Meursault na praia às 2h da tarde) mata Joseph Larquais, parente dos colonos e donos da casa, com dois tiros e depois o enterram ao lado do limoeiro no quintal da casa. Esse evento muda a vida de Haroun tanto quanto muda a de Meursault, pois acontece uma espécie de lei do retorno onde tudo se ajusta e se balanceia na vida de Haroun e sua mãe, livrando-os de viverem à sombra de Moussa. A mãe confessa a Haroun que escolheu aquele roumi (nome pelo qual os muçulmanos designam um cristão, um europeu) porque ele adorava se banhar no mar justamente às 14h onde Moussa foi assassinado e voltava bronzeado e feliz ao visitar a família Larquais. 

A figura do homem surdo-mudo dentro do bar onde Haroun narrava sua história me faz lembrar, por sua descrição, do próprio Camus mas de uma forma que ele estivesse assombrando a obra de Daoud, pela presença do cigarro, como ele o fumava. Camus é tratado por Daoud com respeito, mas com uma certa dose de admiração e rancor simultâneos, tudo num clima de ajuste de contas com a visão eurocêntrica dos colonizadores, do espólio deixado por eles, das feridas abertas e das consequências do governo atual, como vocês podem notar ao desenvolvimento da narrativa que só se intensifica 

Tudo nesta obra de Daoud é planejado, nada acontece ao acaso, tudo minimamente estudado. A linguagem empregada por ele é bem enérgica (o contrário da linguagem árida de Camus, pois seu personagem é sofrido e não como ser seco e impassivo), com ironias, cheia de raiva e revolta com a colonização e o que o país se tornou após a independência, passando uma impressão bem negativa da herança colonial francesa legada aos argelinos. Pela sua narrativa, vemos os mesmos artifícios usados por Camus, mas ao contrário, vemos os franceses (exceto Joseph Larquais) descritos de maneiras genéricas, como o repórter universitário, a colona francesa que a mãe bateu à porta, entre outros.

Nas duas obras, O Estrangeiro e O Caso Meursault, notamos as relações de imperialismo e colonização existentes nas duas obras. Podemos ver em Camus a marca da dominação francesa na Argélia, bem como contribui para o entendimento do romance de Daoud como uma tentativa de romper com essas imagens coloniais estritamente francesas e ocidentais. A questão religiosa é vista como central para a obra de Camus, assim como a de Daoud, dois escritores que lidam com ela a partir de contextos históricos distintos: estando Camus voltado para a morte de Deus, um tema filosófico valorizado no pós-guerra europeu e o de Daoud, voltado à crítica do fundamentalismo islâmico. Walter Mignolo, em sua obra "A opção decolonial", publicada em 2008, onde a escolha decolonial enseja um sentido de compromisso político de luta contra a retórica da modernidade ocidental, a a responsável por levar o Ocidente manipular todas as formas de construções de saber diante do mundo. A retórica da modernidade, reforça o autor, fixou-se em função da matriz colonial do poder, da lógica imperialista, ou seja: domínio, exploração da terra e do povo nativo, não ocidental em intersecções com o racismo e o patriarcalismo. A modernidade e o colonialismo são dois lados da mesma moeda.

A tradição crítica em torno de Camus, destaca que sua obra filosófica e ficcional aborda o contexto ocidental do pós-guerra e das decepções com a violência gerada pela modernidade, sendo assim o diálogo do escritor com o existencialismo sartriano e com o niilismo nietzschiano.Daoud soma essas resultantes da obra de Camus a uma espécie de realismo com traços de naturalismo, criticando ferozmente a transição da Argélia colonial para a Argélia independente em busca de sua identidade recém-liberta, fazendo jus à figura do "árabe" utilizada por Camus para resumir os colonizados sendo todos uma grande massa insignificante para o colonizador, sem esperar que pudesse gerar repercussões. A obra de Daoud gerou muita polêmica, fato que deixarei para o próximo tópico especial sobre o autor e sua trajetória jornalística e literária, sofrendo represálias de ultraconservadores islâmicos que o acusaram de ofender o Alcorão, bem, até a próxima então.


Caio A. Zini

 

Fontes:

CAVALCANTI, Ariane da Mota. O Caso Meursault” E “O Estrangeiro”: Memória Pós-Colonial E Reescrituras Do Sagrado. Circulação, Tramas & Sentido na Literatura, 30 jul. - 03 ago.

CAMUS, Albert.O estrangeiro. Trad. Valery Rumjanek. 38 ed. Rio de Janeiro: Record
2016.
.                           O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1942.
 

DAOUD, Kamel. O caso Meursault. Trad. Bernardo Ajzemberg. 1 ed. São Paulo:
Biblioteca Azul, 2016.
 

MIGNOLO, Walter. La opción descolonial. Letral, 1, 2008, P. 4-22.
 

SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.

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