Filme nº 11 - LO STRANIERO (L'ÉTRANGER), dirigido por LUCHINO VISCONTI


 A adaptação cinematográfica da obra O ESTRANGEIRO, de Albert Camus, feita pelo renomado cineasta italiano, Luchino Visconti, nomeada em italiano de LO STRANIERO, lançada em 1967, não obteve a mesma aceitação que seus filmes anteriores pela crítica especializada. Foi uma preparação turbulenta, começando com a liberação da adaptação pela viúva do autor, Francine Camus, que a liberou sob a condição de que não houvesse nenhuma alteração na trama, fiel à la lettre, diferente da ideia de outros cineastas que pretendiam adaptá-la. A ideia da adaptação veio do momento que Visconti dirigia a atriz Silvia Mangano em "As Bruxas" e o marido da atriz, Dino de Laurentiis (conhecido pelas adaptações de Conan, O Bárbaro, com Arnold Schwarzenegger, na década de 1980), em posse dos direitos da obra de Camus, convenceu-o a dirigir, o que não foi difícil, pois o italiano era fã da obra literária. 
 
As filmagens começaram em 1º de dezembro de 1966 e terminaria em fevereiro de 1967. Entre os desafios do diretor italiano, um deles foi gravar o filme na Argélia independente (alcançada em 1962) no contexto da Argélia colonial, ao final dos anos 1930 - já que a obra literária foi publicada em 1942 -, sob o domínio francês, então Visconti gostaria de ter disponível a antiga rua de Lyon (hoje rue Mohamed Belouizdad), no distrito de Belcourt, “colocando trilhos lá para conduzir o bonde que Mersault ouve em seu quarto, um domingo de verão", mas infelizmente não foi possível, no entanto. ele encontrou o antigo café “Pierrot”, o comerciante de tabaco descrito por Camus no romance "Prisão Barbarossa" (que domina a Casbah de Argel) onde Mersault-Mastroianni está preso, o tribunal, assim como o asilo de idosos em Marengo (a 80 km de Argel) onde a cena do velório foi filmada e o do enterro. A cena do assassinato do “árabe” na praia não pôde ser filmado em locações devido ao frio chuvoso do inverno em Argel, pois as novas construções com vista para o mar tornaram o local irreconhecível, fazendo com que esta cena fosse gravada na Itália, em junho de 1967, na praia de Sperlonga. Quanto à cena da reunião entre Mersault e Marie durante a natação no porto de Argel, foi filmado in loco, apesar do frio, portanto foram necessários alguns dublês corajosos.
 
Note que a tradução do título do romance em francês impõe um problema ao transpôr ao italiano. A palavra "straniero" designa em italiano um homem estrangeiro no país onde mora (advindo de outra nacionalidade), assim direcionando o leitor italiano no sentido da interpretação de Visconti. Se fosse para se manter mais fiel à intenção de Albert Camus, deveria-se optar pela palavra "estraneo" (L’estraneo), que designa um homem estrangeiro para o mundo, para o grupo, para a sociedade, um termo que coloca mais à luz da indiferença de Mersault, sua estranheza, do que o fato de ele ser um pied-noir.


A distribuição de papéis no filme foi ajustada de forma primorosa. Marcelo Mastroianni, disponível logo após o término das filmagens do filme de Federico Fellini, "Il viaggio di Mastorna", interpreta a personagem Mersault, mas não foi a primeira opção do diretor que antes dele, considerou Laurent Terzieff, Jean-Paul Belmondo, até chegar em Alain Delon que era a escolha de Visconti que o queria, no entanto, Delon lhe falhou no último momento, mesmo que ele próprio há muito aspirasse a esse papel, o ator francês, exasperado com repetidos adiamentos do produtor Dino De Laurentiis, declinou o papel devido à sua discrepância no cachê. O próprio Mastroianni financiou um quinto do orçamento do filme, equivalente na época a doze milhões de francos, contudo, Visconti não o considerava adequado para o papel e disse, mais tarde, que às vezes não ele parecia estar ali, o estrangeiro no set era ele. Anna Karina interpreta Maria Cardona, mas originalmente a atriz ítalo-tunisina, Claudia Cardinale, foi escalada por Visconti, mas mudou de ideia após as filmagens de Sandra (Vaghe stelle dell’orsa) onde interpretou Sandra.  Anna Karina ainda lembra, “as verdadeiras dificuldades deviam-se ao clima: tínhamos ido a Argel à procura do calor do sol africano, descrito por Camus, mas era Dezembro, fazia um frio terrível e Marcello tremia de frio em seu traje de banho". Além de Mastroianni, os atores são, portanto, franceses, e foram muito bem dublados em italiano para a versão italiana, até o próprio Mastroianni também foi dublado.
 
Quanto às técnicas de gravação, o diretor utiliza-se do “flash-forward” durante a cena de abertura com as algemas usadas por Meursault-Mastroianni no tribunal onde revela a sua identidade ao juiz de instrução que o interroga. Este distanciamento da estrutura narrativa original vista no romance também não se isenta de problemas do ponto de vista da temporalidade do absurdo que é linear. De fato, o espectador que vê O Estrangeiro de Visconti percebe imediatamente ao longo do prólogo que Mersault está com problemas com a lei ainda que não tenha ciência, entretanto, através deste prólogo que nos tira da temporalidade linear para uma construção “flash-forward”, Visconti necessariamente dá sentido (no duplo sentido de direção e sentido), embora apenas parcialmente, ao que virá a seguir, enquanto que o leitor do romance, de início vetado de sentido, vê-se confrontado desde o primeiro parágrafo de uma forma abrupta e seca na visão absurda de Mersault: “Hoje, a mãe está morta. Neste “flash-forward” de abertura, o espectador e informado que o prenome de Mersault é Arthur, fato inexistente no romance, alteração de ideia de Visconti ao protagonista que, inicialmente, chamaria-se Albert como o autor do romance, sem embargo, mudou-se por escolha do cineasta e que foi cortada no cenário final a pedido de Francine Camus (devido à identificação excessiva entre o personagem e seu autor), depois de ter visto o filme finalizado em Roma no início de agosto de 1967. Seguindo o acordo previsto no contrato, ela deu então sua aprovação final ao roteiro e pôs sua assinatura em cada página dos diálogos, sujeito às correções indicadas por seus cuidados.

Embora discutem-se seus aspectos negativos, como o fato de o diretor o ter renegado, além de sua baixíssima circulação nos circuitos cinematográficos ou sua pretensa fraqueza e irrelevância estética. Se devemos admitir que ele realmente não configura uma grande realização artística, impõe-se também a necessidade de não o rejeitar a priori, sem darmos chances a nós mesmos de conhecermos essa obra periférica do mestre italiano.

A quem quiser, o filme está disponível no YouTube, só precisa ajustar o idioma das legendas na configuração do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=stK5QVSxyts&t=4166s

O Estrangeiro (Lo Straniero)- Itália/França, 1967.
Direção: Luchino Visconti
Roteiro: Luchino Visconti, Suso d’Amico, Georges Conchon e Emmanuel Roblès (baseados na obra original de Albert Camus)
Elenco: Marcello Mastroianni, Anna Karina, Georges Wilson, Bernard Blier, Alfred Adam, Georges Géret, Jacques Herlin, Mimmo Palmara, Bruno Cremer.
Duração: 104 minutos.

Fontes: 

Corbic, A. (2019). L’étranger : Lo straniero de Luchino Visconti. Séquences : la revue de cinéma, (320), 26–31.

Crítica | O Estrangeiro (1967), por Guilherme Almeida. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-o-estrangeiro-1967/

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