Resenha nº 12: DIAS DE FOME E DESAMPARO, por NEEL DOFF (Jours de famine et de détresse)



DIAS DE FOME E DESAMPARO, escrito por Neel Doff (neé Cornelia-Hubertina Doff) (1858-1942), uma escritora de literatura holandesa de expressão francesa. Esta obra foi publicada em 1911 e é a primeira obra que compõe a TRILOGIA DA FOME que é completada pelas próximas duas obras: Keetje et Keetje Trottin, todas obras semiautobiográficas, pois a autora nelas conta a história de sua infância, adolescência e início da vida adulta sob o nome de Keetje Oldema, portanto, nas obras, ela é a testemunha de sua própria miséria e narra as suas histórias de criança do povo, reclama os direitos das mulheres, luta contra a repressão social e a dominação masculina.

Quanto ao estilo das obras, não se trata do Realismo-naturalismo iniciado na França de 1865 à 1895, cujo termo foi primeiramente empregado por Émile Zola no ano de 1866, influenciado pelo filósofo francês Hyppolite Thaine, ao lançar a segunda edição sua obra Thérèse Raquin. Além de Zola, os grandes nomes desta escola literária são Balzac e Maupassant, os de maior destaque. Descreve-se essa literatura de Neel Doff como a "Literatura do Proletariado" ou "Escola Proletária", de acordo com Henry Poulaille, fundador do “Grupo de escritores proletários de língua francesa”, uma literatura estreitamente ligada às lutas sociais. Ao falar da autora, explorarei melhor esta escola.

O primeiro volume, este que vos relato, trata da retrospectiva da infância e da adolescência de Keetjie Oldema. O romance começa com Keetjie assistindo uma cena de crianças batendo em uma outra com aparência de mais pobre, fazendo uma espécie de flashback na mente da personagem que a remete à vida em família com mais 8 irmãos. A obra gira em torno da pobreza e de suas consequências à família de Keetje sob a sua ótica e sentimentos. Todas as obras realistas-naturalistas são ficções, algumas muito bem estudadas, como Germinal, de Zola, como Vidas Secas, de Graciliano Ramos ou como Maggie: A Girl of the Streets, de Stephen Crane, considerada a primeira obra naturalista norte-americana, no entanto, Neel Doff vai além destes autores ao mostrar a sua vida nas páginas da obra, narrada tal como realmente aconteceu, mas sem baixar o nível do texto, sem expôr desnecessariamente ou utilizar da linguagem pornográfica ao falar da prostituição induzida pela miséria, a autora consegue manter o bom nível literário sem deixar de contar qualquer fato. Nota-se a animalização da figura humana, a submissão total ao que a miséria proporciona. Uma passagem que me marcou foi o trabalho de Keetje com o tingimento de roupas na Bélgica, só de mulheres trabalhadoras, é flagrante o assédio de todas as formas sobre a personagem, tanto sexual, vindo de seus superiores, quanto o moral, com o bullying cometido por suas colegas ao notarem que ela é holandesa.  

Em Dias de Fome e Desamparo, Keetje descreve principalmente as cenas familiares, como as dificuldades do pai ao lidar com a constância do desemprego e posteriormente as cenas de alcoolismo; os desentendimentos com a mãe e a irmã mais velha, Mirna; as conversas com os irmãos mais novos e o desenvolvimento de seu instinto maternal mais que fraternal por eles; entre outras cenas, mas as que mais são reais e destaca a autora entre seus demais colegas são as conversas reais e a pessoalidade que elas passam, seus medos, raivas, revoltas, repulsas, indignação com a prostituição da irmã, posteriormente a sua própria quando se vê cercada de irmãos famintos. Essa miséria toda lhe causa vergonha, pois vai a casas de vizinhos e ex-vizinhos com seu irmão a pedir comida e provisões. Além dessas cenas familiares, que a autora põe o peso da culpa por toda a sua marginalidade social e os motivos da desagregação do núcleo familiar no comportamento de seus pais, existem as demonstrações de desprezo aos pobres e miseráveis provocadas pela sociedade holandesa e também a belga que ilustram este romance, principalmente no que se refere às mulheres. 

Keetje é constantemente assediada, por sua beleza, a se prostituir ou induzida a tirar vantagem de sua condição, algo que reluta até o momento em que seus pais e irmãos, esgotados em vãs tentativas de conseguir emprego ou dinheiro, se vê forçada a tal, ou a aceitar empregos exploratórios e sem futuro somente para ter o que comer. A primeira parte do romance se passa em Amsterdam e a segunda, na Bélgica. Nas duas partes, a vida de Keetje é conduzida pelos pais, mas não de maneira passiva, e sim de confronto, a partir de um certo ponto, ao atingir a adolescência, pois já criticava abertamente a maneira a qual eles conduziam a família, criando em certo ponto, uma inversão de papéis quando assumiu o papel de provedora da família ao se prostituir.

Uma pena que a Editora Sobinfluencia somente lançou a primeira das três obras, pois gostaria muito de ler as duas seguintes, mas vou ter que apelar para a versão francesa e encarar o desafio. Vou falar também sobre a adaptação cinematográfica realizada por Paul Verhoeven, no ano de 1975, e também sobre a biografia da autora.


Caio A. Zini 



Editora ‏: ‎ sobinfluencia edições; 1ª edição (1 junho 2020)

Capa comum ‏: ‎ 144 páginas 

Ranking dos mais vendidos: Nº 378.814 em Livros. Nº 16.585 em Ficção Literária Literatura e Ficção


Fontes:

Scohier, Thibault. Neel Doff, la postérité douloureuse. 2020. Em: https://revues.be/karoo/365-karoo-avril-2021/961-neel-doff-la-posterite-douloureuse


 

 

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