Filme nº 12 - OS AMANTES DE KATIE TIPPEL (Dirigido por Paul Verhoeven, 1975)

Katie Tippel (título holandês: Keetje Tippel) é um filme de 1975, de Paul Verhoeven. O filme é baseado nas memórias de Neel Doff (1858–1942) e foi o filme holandês mais caro produzido até então, sendo um sucesso de bilheteira e o filme número um na Holanda no ano com 1,8 milhões de espectadores e um dos 10 filmes holandeses mais populares de sempre na época.

Uma adaptação de uma obra literária para o Cinema nunca é uma tarefa fácil, pois, corre o sério risco de causar insatisfação, principalmente, nos fãs da história original e também no autor, quando vivo, como ocorreu no famoso caso da adaptação de "O Iluminado" feita por ninguém menos que Stanley Kubrick, mas não aprovada por Stephen King, no entanto, o próprio Paul Verhoeven demonstra insatisfação com sua versão cinematográfica para a obra de Neel Doff - escritora holandesa de expressão francesa, que se desdobra em três volumes conhecidos como a "Trilogia da Fome", obras expoentes da Literatura Proletária, como explicado em detalhes na postagem anterior - lançada em 1975. Nesta versão cinematográfica, Verhoeven - mais conhecido por filmes como os blockbusters Robocop (1987) e O Vingador do Futuro (1992) - junta os dois primeiros volumes que a compõem: Dias de Fome e Desamparo (1911) e Keetje (1919). Note que a personagem, Keetjie ou Katie, é um pseudônimo para ela mesma, então se trata aqui de uma obra autobiográfica, mas com toques de ficção. Na edição estadunidense do DVD lançado, é possível ver a entrevista com o diretor que fala de suas frustrações e descontentamentos com seu trabalho que, curiosamente, influenciou outro filme lançado exatos 20 anos depois, Showgirls, que narra a história de uma mulher que também passa por muitas humilhações durante sua escalada social e também caiu no descontentamento do diretor porque a narrativa é, assim como em "Os Amantes de Keetjie", conduzida por um viés muito sexual, este último ainda mais, lembrando que Verhoeven já havia produzido outro filme com o mesmo casal de atores como protagonistas:  Monique Van de Ven e Rutger Hauer, chamado Louca Paixão (Turkish Delight), lançado em 1971, mas as cenas de sexo têm maior contexto e não ficam como se fossem gratuitas, o que já começa a perder o controle em Os Amantes de Keetjie e vai ao exagero em Showgilrs. Essa questão do teor de sexualidade ser ou não descontrolada gera discórdia entre fãs e críticos. Não deixem de ver o filme do diretor lançado em 2021 chamado Benedetta, também muito sexualizado, mostra a história de uma freira de mesmo nome que tem visões violentas de Jesus salvando-a, mas há o lado homossexual da personagem e o dilema de lidar com esse fardo em um convento do século XVII.
 
Um resumo da trama: " A família muda-se para Amesterdão num skûtsje, um veleiro frísio como o que aqui se mostra. O filme começa em 1881 em Stavoren, uma pequena cidade rural holandesa na província de Frísia, e acompanha a família de Katie até Amesterdão, onde esperam escapar à pobreza extrema encontrando trabalho. Quando chegam, Katie consegue um emprego numa tinturaria, mas é despedida quando se recusa a ter relações sexuais com o diretor. Encontra um emprego numa loja de chapéus, onde, durante uma viagem de negócios a um bordel, descobre a sua irmã mais velha, Mina, a trabalhar lá. Mais tarde, nessa noite, de volta à chapelaria, é brutalmente violada pelo dono e, como vingança, parte a montra da loja". 
 
Agora, nesta segunda parte, já fora de casa: "O seu primeiro cliente é um cavalheiro, a quem Katie não satisfaz devido à sua inexperiência. O seu segundo cliente, um artista chamado George, leva-a ao seu estúdio para posar para uma pintura que retrata uma revolução socialista. Paga-lhe o valor negociado pelos serviços, mas diz que só quer que ela seja modelo. Apresenta Katie a Hugo, um banqueiro, e André, um socialista rico, e vão jantar a uma discoteca. A reeducação de Katie começou. André sente-se atraído por Katie, mas ela parece apaixonada por Hugo, com quem vai para casa e dorme. Hugo dá dinheiro a Katie para comprar um vestido novo e combinam encontrar-se no parque. É aqui que a vida passada de Katie ameaça alcançá-la quando o cavalheiro com quem se aproximou alguns dias antes a reconhece e informa Hugo que conheceu Katie quando esta custava apenas cinquenta cêntimos. Hugo dá-lhe um soco, recusando-se a acreditar na sua história e promete a Katie que poderá viver com ele "para sempre". Katie vai visitar a sua família e informa-a que pretende partir. A mãe pergunta-lhe como vai alimentar as crianças se Katie não estiver para cuidar delas. Katie diz à mãe que "devia ter tido menos relações" e sai furiosa, dando um pontapé na mãe histérica que tenta impedi-la de sair.

Finalizando: "Ao chegar a casa de Hugo, Katie adapta-se à vida da burguesia, mas depressa se sente incomodada por ter de espiar alguns dos lojistas menos abastados de Amesterdão para ver a quem Hugo deve recusar crédito. Depois de ser exposta numa cafetaria e de lhe atirarem chocolate quente para a cara, Katie diz a Hugo que não fará mais o seu trabalho sujo. Logo Hugo informa Katie que pretende casar com a filha do diretor do banco onde trabalha. Embora Hugo proponha um acordo mesmo depois de se casar, Katie corre para a rua e junta-se a uma marcha socialista. A polícia chega para dispersar o protesto e abre fogo sobre os manifestantes. Durante a confusão, Katie reencontra-se com George e Andre, que também estão presentes. André é baleado no braço e desmaia, batendo com a cabeça. George leva-os até uma carruagem que espera ali perto e André e Katie embarcam nela, levando-os para a mansão de André no campo. Katie fica com ele e, quando ele acorda, torna-se claro que um romance vai florescer entre os dois. Discutem o assunto do dinheiro, e Katie diz a Andre que "o dinheiro transforma as pessoas em sacanas". Quando o ferimento na cabeça de André começa a sangrar, Katie informa André que a melhor cura é sugar o sangue. "Está melhor", diz ela, com um fio de sangue a escorrer-lhe do canto da boca. A imagem congela e surge uma legenda a informar-nos que o filme é baseado em factos reais da vida de Neel Doff e que "o seu espírito indomável continua vivo neste filme". Extraído de: "Top 20 Dutch Features, 1945-1989". Variety. 29 October 1990. p. 46.

As semanas passam, enquanto o pai de Katie trabalha numa fábrica com um salário baixo e Mina cai no alcoolismo. Ao tentar roubar pão, Katie é deixada inconsciente por um polícia e levada para um sanatório. É claro que o seu corpo é o seu único bem quando um médico diagnostica tuberculose, mas recusa o tratamento a não ser que ela durma com ele. Não é claro se isto acontece, mas ao receber alta, Katie reúne-se com a sua família e descobre que o pai foi despedido e a irmã está demasiado embriagada para dormir com clientes. A mãe de Katie decide que, em vez de deixar a família passar fome, Katie também se deve prostituir.
 
A ideia original de Verhoeven para este filme era de fazer um grande painel sobre o surgimento do socialismo na Holanda do século XIX, mas infortunadamente, a produção temeu por um aumento nos custos se seguisse esta vertente no projeto, que poderia estourar o orçamento, então a opção foi centrar-se na personagem de Katie Tippel (na verdade, a versão ficcionalizada de Neel Doff) que aos seus 50 anos de idade, já uma mulher da alta-sociedade, começa a se lembrar de seu passado de miséria e devido a este estado, foi levada à prostituição para ajudar no sustento da família, tornando-se a única fonte de renda com a deterioração do estado de saúde física e mental de seu pai que se afundou num ciclo de alcoolismo e desemprego o qual não conseguia se livrar. O papel de Katie é interpretado pela atriz holandesa, Monique Van de Ven, com quem Verhoeven já havia trabalhado em seu filme anterior, Louca Paixão (Turkish Delight), como a amada de Rutger Hauer - antes de sua ida à Holywood e posterior estouro no famoso thriller de ficção científica, Blade Runner -, que também trabalha neste filme no papel de um bancário ambicioso e amante de Katie. Dentre outros arrependimentos do diretor, consta que ele se arrepende de não ter feito o filme em flashback, conforme acontece no livro de Neel Doff, mostrando-a já em idade avançada, relembrando de seu passado após presenciar um fato pela janela de sua casa que lhe lembrou a infância, além da alta dose de erotismo, mas o maior arrependimento de todos foi a profanação das memórias da escritora que foi retratada como uma eterna prostituta.

Uma comparação entre a atuação da atriz e a narração apresentada no primeiro livro da Trilogia da Fome, Dias de Fome e Desamparo, apresentado nas resenhas anteriores, pode-se notar que a atriz Monique Van de Ven exagera nas feições e atua, por vezes, com um comportamento infantil da personagem de Katie, por vezes também com um comportamento explosivo, detalhes adicionados pela própria atriz e não vemos na obra, mas não prejudica de maneira alguma sua performance que acaba conferindo à personagem, sua sexualidade, despertada após ela deixar a família e ser introduzida à prostituição com a partida de sua irmã mais velha, sexualidade que podemos ver nas várias cenas as quais a atriz mostra seu belo corpo e explicando o que Katie despertava nos homens, desejos luxuriosos, inclusive há uma cena de estupro, perpetrado pelo seu primeiro patrão, apesar de ela resistir e que torna a cena ainda mais forte, mas não tinha forças, demonstra a crueza da realidade que ela vivia, e após o ato, Katie quebra a vidraça da loja com uma pedra, fato que, posteriormente, rompe sua resistência à prostituição vista recriminou sua irmã por se prostituir, mas depois cedeu aos pedidos dela e depois ao da mãe que também a estimulou e já a usava desde criança por sua notável beleza. Ao desenrolar dos quadros, nota-se uma relação de sexualidade e inocência nos traços e na interpretação de Monique, aliás, esse é o ponto que torna o filme mais leve que o livro, demonstrando que mesmo após o estupro, ela se mantém a mesma, não ocorrendo uma degradação de seu ego.

A respeito da intenção original de Verhoeven, destacar o aspecto político do momento o qual a Holanda passava, da ascensão da influência marxista, a industrialização e o crescimento da classe trabalhadora, após a primavera dos povos aparece nas condições insalubres de trabalho em uma tecelagem mostrada assim que a família chega em Amsterdã; a situação precária de moradia da família; a questão da prostituição não só de Katie, mas de sua irmã e de seu irmão menor que ela o flagra em um banheiro público com um senhor e depois eles, com fome, roubam pão e mais pessoas na rua fazem o mesmo, mostrando a precariedade até para a população se alimentar; uma passeata noturna de trabalhadores que Katie se junta ao seu amigos, o pintor George e o playboy André. O aspecto de como a saúde é tratada aparece quando Katie é internada para tratar uma tuberculose, então podemos ver como era um hospital nesta época e que ela, com sua beleza, teve que usá-la para conseguir um bom tratamento e não morrer, como ela viu acontecer com uma das pacientes onde ela estava internada.  

As diferenças do primeiro livro, Dias de Fome e Desamparo, em relação às partes que passam no filme, o leitor verá que o filme começa em uma parte já avançada e de maneira errada, com a família chegando em Amsterdã ao invés de chegar na Bélgica, como deveria ser, portanto, as partes acontecidas na Bélgica, no livro, se transpuseram para Amsterdã, uma grande perda, em minha opinião; outra parte que ocorre é a do estupro pelo patrão da loja de roupas, fato que não ocorre no livro e da mesma forma que o irmão não se prostitui, pois, no livro, ele faz números circenses, e não prostituição. A intenção de Verhoeven foi abordar os problemas sociais acontecendo na Amsterdã daquele período mesmo que sacrificando ou modificando muitas das cenas e narrativas pessoais da escritora, conferindo uma interpretação diferenciada da que se lê e se percebe da personagem. O restante da história narrada no filme que não se encontra neste primeiro volume da trilogia, mas no segundo e terceiro livros, não posso opinar, pois só vou consegui-los em língua francesa.

Para uma melhor análise, aconselho aqui a assistirem os filme Louca Paixão (Turkish Delight), seguido de Os Amantes de Katie, depois Showgirls e por último Benedetta. Assim se poderá entender o peso deste filme para o autor, tanto para antes, quanto para depois de seu lançamento. Verhoeven tem um olhar subversivo que traz a sexualidade à tona em todos estes filmes, sendo o mais bem comportado, este que vos resenho.

 

Elenco


    Monique van de Ven como Keetje "Tippel" Oldema

    Rutger Hauer como Hugo

    Peter Faber como George

    Andrea Domburg como a mãe de Keetje

    Hannah de Leeuwe como Mina, irmã Keetje

    Jan Blaaser as o pai de Keetje

    Eddie Brugman como André

    Jennifer Willems como Antoinette



Fonte: Alpendre, Sérgio. OS AMANTES DE KATIE TIPPEL. <http://www.contracampo.com.br/62/osamantesdekatietippel.htm>

 

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